11 de julho de 2009

Cultura, recurso para o desenvolvimento

Por Heloisa Buarque de Hollanda



Um dos fenômenos mais alarmantes desse início de século são os números da progressiva favelização e desemprego, muitas vezes também chamada de “humanidade excedente”, especialmente em países em desenvolvimento. Segundo Mike Davis, no livro The planet of slums, um estudo bastante impressionante, a população favelada, aferida pelo UN-Habitat report, cresce hoje em torno de 25.000.000 de pessoas por ano. Este mesmo relatório avalia que os novos pobres periurbanos e suas comunidades informais ou favelas, em 2020, chegará de 45% a 50% do total dos moradores da cidade. No Brasil, os números deste Big Bang da pobreza urbana não são menos dramáticos.


A população que vive em favelas ou “aglomerados subnormais” cresceu 45% nos últimos anos, três vezes mais que a média do crescimento demográfico do País. Hoje, temos 51,7 milhões de favelados, resultado de uma trágica equação de mercado, tornando o Brasil a terceira maior população favelada do mundo, atrás apenas de Índia e China. Nesse quadro de aumento aparentemente irreversível das desigualdades sociais e econômicas e de altos índices de miséria, sobressaem-se, de forma surpreendente, os possíveis usos da cultura enquanto fator de desenvolvimento nas favelas e comunidades de baixa renda no Brasil.


Neste sentido, podemos pensar no conceito de “cultura como recurso”, noção batizada por George Yudice, professor da Universidade de Nova York. Essa noção expressa de forma contundente o contexto da globalização, na qual pode-se observar uma inédita expansão da cultura para os campos da política e da economia e, simultaneamente, o esvaziamento das noções tradicionais e elitizantes de cultura. Hoje, a cultura é um valor a ser preservado em sua diversidade e pluralismo – assim como a biodiversidade – e o investimento em cultura é visto como prioritário para o fortalecimento da fibra social e, conseqüentemente, para o desenvolvimento político e econômico.


Em seus vários e diversificados usos, tanto como economia emergente no mercado global quanto como forma de negociação ou resistência, a cultura tornou-se efetivamente um recurso para a melhoria sociopolítica, para a formação de quadros e geração de renda, para o gerenciamento de conflitos e para a construção da experiência cidadã. Na mesma pista, Jeremy Rifkin cria a noção de capitalismo cultural que teria sucedido e mesmo eclipsado o capitalismo industrial, referindo-se a uma idéia de cultura em tempos de dominância dos fluxos informacionais e comunicacionais permitido pelos meios digitais. A antiga luta de classes perde o sentido diante da luta pelo direito ao acesso à informação e à cultura. Vou trazer aqui um exemplo prático para exemplificar um dos mais eficazes modelos de uso da cultura como recurso para promover geração de renda e inclusão social. Falo do caso do Grupo Cultural AfroReagge, da Favela do Vidigal, Rio de Janeiro.


O AfroReggae é uma ONG criada a partir do impacto na imprensa e na sociedade civil, gerado por um confronto sangrento entre os chefes do narcotráfico e a polícia, que terminou com um terrível massacre de 21 inocentes, no dia seguinte ao embate, percebido por todos como uma vingança da polícia. Os moradores inauguraram, e desenvolvem desde então, uma estratégia singular cuja meta é retirar os jovens do trabalho com o narcotráfico através do estímulo à produção cultural nessa comunidade. Este uso estratégico da cultura, hoje fartamente utilizado nas favelas brasileiras, inicialmente para enfrentar o império do narcotráfico nessas regiões, desenvolve-se e amplia-se no sentido dos usos da cultura como fatores de geração de renda, de alternativa ao desemprego progressivo nessas comunidades, de estímulo ao aumento da auto-estima, de afirmação da cidadania, e, conseqüentemente, de demanda por direitos políticos, sociais e culturais. O caso AfroReagge é exemplar nesse sentido.


Nesses 15 anos de atividades, conseguiu beneficiar mais de sete mil jovens através de 72 projetos políticos e socioculturais no Brasil e no exterior; 13 subgrupos artísticos; cinco ONGs apoiadas no Brasil e uma no exterior (Colômbia). Sua ação vem sendo expandida por meio da coordenação de mais quatro outros núcleos de cultura em outras favelas do Rio de Janeiro, disseminando sua metodologia e a missão de promover a inclusão e a justiça social, utilizando a arte e a educação como ferramentas. Além disso, o AfroReggae, com o apoio da UNESCO, exporta suas tecnologias sociais e expertise em gestão de conflito, usadas inicialmente no controle dos embates de facções de traficantes rivais, para casos de conflito na Índia, Londres e Colômbia.


A forma de ação distintiva desses novos projetos culturais é a de uma atitude “pró-ativa” a partir e para a comunidade, que surge agora com maior eficácia no lugar das velhas políticas de reação, oposição e denúncia de abandono do Estado. Essa atitude privilegia a ação pedagógica, em lugar do confronto agressivo, com excelentes resultados para as comunidades pobres. De uma forma mais geral, o que é reivindicado é o acesso à cultura, visto como um direito básico de todo cidadão, identificado como uma das grandes carências dessas comunidades e como fator estratégico para qualquer projeto de transformação social. Algumas prioridades são estabelecidas nessas ações culturais. Uma delas é a conquista de visibilidade para as comunidades por meio da divulgação intensiva da informação sobre a condição de vida nas favelas, os desejos e as demandas dos habitantes destas comunidades. O rap é a mídia mais agressiva no sentido da conquista da visibilidade, ganhando aqui um status de luta.


Além do rap toda a cultura produzida na favela parece ter esse compromisso com a potencialização das ações de disseminação da informação. Outro objetivo importante do investimento político feito na cultura por esses atores é a formação de quadros na área da cultura e do desenvolvimento da capacidade de se situar no mercado de trabalho, desenvolvendo uma pedagogia de formação do empreendedor engajado. Engajado porque cria um compromisso de redistribuição dos saberes adquiridos e atua na formação de novos quadros nas comunidades de origem.


Examinando o quadro político-cultural das favelas brasileiras fica clara a importância da multifuncionalidade das práticas culturais no mundo de hoje. Se durante dois séculos assistimos o triunfo da economia sobre a política, hoje as questões culturais, aquecidas pelos crescentes conflitos sociais e pelo impacto das possibilidades de produção e articulação proporcionadas pelas novas tecnologias digitais, começam a se impor como eixo político por excelência das formas emergentes de práticas políticas. É neste sentido que os direitos culturais vêm sendo uma demanda nova e significativa no panorama político e econômico global.


* Heloisa Buarque de Hollanda é professora de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, do Fórum de Ciência e Cultura e do Instituto Projetos e Pesquisa, ambos da UFRJ. Também dirige a Aeroplano Editora Consultoria Ltda.

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