Regulamentação e hipocrisia
Publicado em 15-Out-2010
(artigo publicado no Blog do Noblat em 15 de outubro de 2010)
O ministro Franklin Martins foi à Europa convidar entidades internacionais para que participem de um seminário que será organizado pelo governo federal em novembro, no qual será discutido um projeto de regulamentação da comunicação por meios eletrônicos no Brasil.
A proposta será discutida pelos próximos parlamentares, que têm mandato até 2014, num amplo processo de debates como é da regra do jogo democrático. O mesmo caminho foi trilhado pelos demais países democráticos que aprovaram em seus Parlamentos legislações de regulação da mídia.
A mídia não é um segmento econômico qualquer. Seu produto são os fatos, as opiniões e as ideias, importantes para o debate político, para a fiscalização dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para a formação da opinião pública. Mas a mídia, como outros segmentos econômicos, precisa ser regulada para que se impeça que meios de comunicação exerçam seu poder significativo de mercado, ou seja, a força de seu monopólio, quando ele ocorre, em detrimento dos direitos do cidadão e das liberdades individuais.
Embora as legislações modernas dos países desenvolvidos contemplem a regulação da mídia como peça importante da garantia dos direitos democráticos, as entidades que representam os maiores jornais e as redes de TV e Rádio já estão em alerta. Especularam, em seus jornais, que o governo do presidente Lula estuda medidas “autoritárias” de “limitação da liberdade de imprensa”.
Esse receio só pode ser fruto de ingenuidade ou má-fé: a viagem do ministro à Europa se dá justamente em um momento em que o Velho Continente, por meio da União Europeia, também está discutindo a regulamentação do setor.
No caso europeu, há necessidade de atualizar as leis vigentes para contemplar as possibilidades mais recentes de comunicação pela Internet. Já no Brasil, a necessidade de revisão é mais ampla, pois a legislação da radiodifusão data de 1962, mais do que ultrapassada. Uma legislação caduca, atropelada pelo advento da Internet e da convergência tecnológica que permite que por meio da mesma rede se transmita múltiplos serviços. Pelo celular, por exemplo, se pode acessar a Internet, ler notícias, mandar e-mails, jogar e assistir aos programas de televisão.
Essa nova realidade de comunicação multimídia por diversos meios, que vão muito além do rádio e da TV, exigem uma nova regulação. Em primeiro lugar, para evitar que a entrada em cena das operadoras de telecomunicações, fortes e poderosas, formem novos monopólios, aumentado ainda mais a concentração de mercado. Em segundo, para impedir que as empresas de mídia atuais ampliem seu poder de mercado, sem mecanismos de controle social. E mais do que isso: é preciso garantir espaço para as produções de conteúdo nacional.
Isso os países europeus já têm. Na França, o Conselho Superior do Audiovisual tem a missão de garantir que os canais de rádio e televisão reflitam a diversidade cultural francesa por meio da democratização das outorgas de transmissão e do controle de origem dos conteúdos: nas rádios, há uma cota de músicas em língua francesa que tem de ser transmitida, e, na TV, 60% do conteúdo tem de ser europeu —e, destes, 40% de origem francesa.
O CSA francês é formado por dez conselheiros, sendo que nove deles são indicados pelo governo (três pelo presidente, três pelo Senado e três pela Câmara dos Deputados). Esse modelo predomina na Europa. No Reino Unido e em Portugal, existem ainda órgãos governamentais aos quais a população pode encaminhar reclamações referentes à qualidade da programação e do conteúdo jornalístico dos canais que desfrutam de outorgas públicas.
No caso português, um dos mais recentes na Europa (foi instituído em 2005), a regulação atinge também os jornais impressos, os blogs e os sites independentes. Mesmo nos Estados Unidos, ainda tido como expoente máximo da democracia pelas empresas de comunicação brasileiras, justamente pela ausência de uma regulamentação unificada e sólida, um órgão forte —o FCC (Comitê Federal de Comunicação, em inglês)— regula o conteúdo das emissoras de televisão para evitar abusos contra os consumidores e cidadãos.
As limitações de propriedade lá são ainda maiores do que aqui no que se refere à comunicação de massas.
Nos países desenvolvidos, falar em regulamentação não causa furor, nem tentativas de rotulagem como aqui no Brasil. A compreensão mais ampla sobre seus direitos e suas responsabilidades, especialmente as socioculturais, permite com que europeus debatam de forma aberta a regulação do setor de comunicações, inclusive com a participação das empresas e profissionais.
É apenas disso que se trata a proposta apoiada pelo PT e que os monopólios brasileiros demonizam, como se temessem mortalmente o escrutínio de sua própria audiência. São medidas de inclusão social e cidadã adotadas em países de tradição democrática forte e consolidada, portanto, em nada se assemelha ao tolhimento da liberdade de expressão ou a autoritarismo.
No Brasil, no entanto, são tratadas como “ditatoriais” pela mídia corporativa, que busca a autorregulação à margem do Estado e da opinião do povo brasileiro. Seria mais produtivo que abandonassem tal hipocrisia e abraçassem o importante papel que têm em mãos: o de contribuir para o desenvolvimento do país nesse setor tão crucial para o nosso futuro.
Zé Dirceu
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