Por Daniel Dantas
Eu creio no que Jesus fez em Sua vida, morte e ressurreição. Assumo como minha fé a fé dos apóstolos traduzida no credo apostólico. Afirmo que a pregação do evangelho da graça é o valor do sacrifício de Cristo. Não pregamos o anti-nada, mas a vida de verdade em Jesus.
Digo isso, assim, de início porque há algumas semana, de uma forma ainda mais profunda, me envergonhei de ser conhecido como evangélico ou crente. Há tempos já evitava chamar a comunidade na qual me congrego de igreja por entender que o conceito está carregado de uma ideologia com a qual minha comunidade não se relaciona. Vivo minha fé em uma comunidade plural e receptiva, com problemas e pecados, mas que tem por princípio vida e liberdade no Espírito. Procuramos assumir em nosso meio um compromisso ainda mais intenso com o evangelho da Missão Integral.
Duas ações de estratégia eleitoral de grupo evangélico ligado a Marina, que no fundo são a mesma ação, me remeteram a 2002. Naquele ano, o grupo evangélico que apoiava Garotinho, perpetraram uma sórdida campanha difamatória contra Lula e o PT junto às igrejas evangélicas. Incluindo mentiras e abobrinhas sobre ameaças à liberdade religiosa se o PT alcançasse o poder. Circularam DVDs e CDs com as ameaças em praticamente todas as igrejas do país. Provavelmente tal ação contribuiu para empurrar a eleição para o segundo turno naquele ano. Parlamentares evangélicos do PT precisaram ir a público para desmentir o que havia sido dito, mas o estrago estava feito.
O pior foi que no segundo turno todos esses estavam no palanque de Lula. Fazia seminário nesta época na cidade de Fortaleza (CE). No segundo turno eu e o meu amigo Erivan Júnior, hoje pastor no Rio de Janeiro, nos envolvemos com o comitê evangélico pró-Lula em Fortaleza. Estivemos em uma reunião com líderes da IURD e parlamentares ligados a igrejas de diversos partidos. Júnior falou na reunião que considerava extremamente salutar que os evangélicos pudessem se unir na tarefa de eleger um candidato progressista no país, depois do papel vergonhoso que as igrejas assumiram durante o regime militar e, mais recentemente, com a ação difamatória impetrada contra Lula candidato no primeiro turno – “imagino que o irmão Garotinho nada tivesse a ver com isso”, disse ele, ao que foi desmentido de imediato por um pastor ligado ao ex-governador carioca que estava na reunião, que disse ter sido uma decisão tomada pela coordenaï �½ �ão de campanha de Garotinho, com a presença do candidato, disseminar o DVD e o CD entre os evangélicos brasileiros.
Esta semana fiquei sabendo que os evangélicos brasileiros continuam adotando a mesma estratégia sórdida. Se é preocupante termos disputas eleitorais permeadas por acusações sobre elaborações de dossiês de lado, é mais ainda quando vemos que parte de nossa liderança religiosa não entra em campanhas eleitorais com ações afirmativas e propositivas, mas apenas com acusação e o discurso do anti.
Primeiro recebi e-mail de um tio de minha esposa com um texto de Valnice Milhomens acusando o PT por causa do PNDH 3. Não sei o que mais me incomodou: o ataque ao PNDH 3, que defendo, ou o recurso a uma liderança controvertida e com teologia bastante questionável, que é Valnice. Depois vi, através do twitter, vídeo o pastor Piragine, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, em que, ao fim de um vídeo editado para misturar alhos e bugalhos, ele defende que ninguém vote em candidatos do PT. Esse vídeo me fez chorar de vergonha.
Eu sou membro da Igreja Batista Viva, em Natal. Sou também filiado e militante do Partido Comunista do Brasil. Tenho minhas razões para ambas as coisas, mas não cabem nesse texto expor esses motivos – não é esse o propósito do que escrevo aqui. Somente destaco isso porque são muitos os cristãos de tradição evangélica que militam em partidos como o meu ou o PT e que dão apoio ao governo Lula. A própria candidata Marina Silva, membro da Assembleia de Deus, foi ministra de Lula por seis anos. Se o que pastor Piragine fala devesse ser levado a sério, eu e meus irmãos estaríamos em sérios apuros. Não sei o tamanho da iniquidade em que estaríamos metidos, mas provavelmente não poderíamos mais viver sob a graça de Cristo. Piragine se colocou no papel de juiz de seus irmãos e do mundo. Tenho a impressão que não deu um passo correto.
Vivemos em um estado laico. Aliás, essa foi uma conquista que se deve, em grande parte, às reformas protestantes e à reforma radical dos anabatistas – da qual os batistas somos herdeiros. O estado laico não pode ser ameaçado por nada. A separação entre estado e igreja é fundamental para a manutenção da democracia. Um estado teocrático é, necessariamente, um estado absolutista.
Parece-me que uma parte considerável da liderança evangélica conservadora no Brasil pensa estarmos em uma teocracia. Desse modo, querem impor à sociedade como um todo a visão de mundo de nossa fé. É como se não houvesse, por exemplo, homossexuais no país – talvez eles achem que não existem homossexuais nem em suas igrejas. Ou, o que é pior e mais provável, é como se eles considerassem que os homossexuais não têm direito a ter direitos por causa de sua orientação sexual. Esse foi o recado que eu li no vídeo do pastor Piragine. Os conservadores atacam o governo porque o PT defende a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Então me ataquem, seu irmão de fé, porque eu também defendo.
E defendo porque na minha relação com Deus e com o texto bíblico entendo que o princípio de justiça supera qualquer outro. E mais: o povo de Deus e os governantes sempre foram julgados pelo Senhor porque cometiam injustiça. Tenho impressão, inclusive, que na Bíblia iniquidade tem muito mais a ver com injustiça do que com o que diz o pastor Piragine.
Não existe Estado no mundo que obrigue uma igreja a realizar um ato contrário a seu credo. Ou seja, ninguém nunca discutirá a sério o casamento entre pessoas de mesmo sexo. Primeiro, porque os movimentos religiosos que o defenderem já o celebram hoje. Segundo, porque o estado legisla sobre união civil. Essa distinção nunca é bem explicada aos fiéis mais incultos e fica parecendo que a esquerda brasileira defende que policiais entrem nas igrejas e as obriguem a celebrar um casamento com o qual elas não concordam. Era isso que dizia, explicitamente, o vídeo distribuído em 2002.
O que é mais grave, para mim, é o recrudescimento de uma postura autoritária e discriminatória no meio do povo que se chama como de Deus. Na mesma semana que um pastor fundamentalista americano ameaçou tocar fogo em exemplares do Alcorão eu me deparo com discurso muito semelhante no nosso país. O discurso que a sociedade deve estabelecer a existência de subcidadãos, sem ou com menos direitos que os demais. É isso que se depreende dos textos que eu li.
Sobre o PNDH 3 a discussão poderia ser ainda mais extensa. Participo de movimentos sociais em defesa da democratização da mídia. Tais movimentos respaldados nas mais recentes pesquisas e teorias de comunicação respaldam integralmente o texto PNDH 3 no que se refere ao controle social da mídia. Apenas os empresários são contrários, por exemplo, a formação de um Conselho Federal de Jornalistas, uma vez que representaria a redução do controle patronal sobre a opinião e a honestidade dos jornalistas que, desse modo, precisariam responder a um Comitê de Ética em caso de desvios básicos muito comuns em nossa imprensa, como não ouvir o contraditório. Mas esse não é o foco de meu texto.
Creio em um relacionamento com Deus firmado unicamente na pessoa de Cristo. Creio também que Paulo estava corretíssimo quando resumia a mensagem do evangelho a Cristo e este crucificado. Nossas igrejas sempre pecaram porque parecem entender que a mensagem do evangelho é outra: era anti-católica no século XIX, precisa incluir a condenação aos homossexuais no século XXI e agora está voltando a ser anti-petista, como foi em 1989 e 2002. Entendo que corremos risco sim, se não entendermos qual a mensagem do evangelho e da cruz de Cristo.
Por fim, uns destaques. Sou contra o aborto. Por princípio de fé e por princípio de vida. Participo de movimentos em que a maioria das pessoas é favorável. Mas hoje essa é uma discussão desvirtuada. Quem quer fazer aborto no Brasil, faz. Se tem dinheiro, pode até sair do país para realizar o aborto em clínicas de qualidade. Se não tem, arrisca a vida. A discussão do aborto, como das drogas, deve ser prioritariamente de saúde pública e não de polícia.
O que uma igreja deve fazer com uma mulher que aborta? Se uma jovem que cometeu aborto bater na porta do gabinete pastoral do pastor Piragine, ele chamará a polícia, a acolherá ou virará as costas? A julgar pela postura naquela pregação, apostaria na terceira opção.
P.S.: Há um trecho do vídeo que o pastor Piragine exibe em que um líder da parada gay conclama que não se vote em fundamentalista cristão. Não diria algo melhor.
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