É preciso mudar o modelo
ALFREDO MANEVY
A autorização do Ministério da Cultura para Maria Bethânia captar recursos reacendeu discussão sobre o papel das verbas oficiais para a cultura. No varejo, o debate abriu espaço para teses do arco da velha, como a proposta de extinção do Ministério da Cultura ou o linchamento e culpabilização da artista.
Na verdade, Bethânia foi vítima da ilegitimidade da lei tal como ela se apresenta hoje. O debate foi positivo no fim: consolidou a percepção de que o sistema tem distorções e que, no lugar de crucificar uma artista fundamental, a modernização da legislação é o melhor caminho.
A renúncia fiscal é dinheiro público, aponta o Tribunal de Contas da União. Integrante do Orçamento, a previsão de renúncia é finita e contabilizada, embora de difícil controle e acompanhamento. Logo, é justo discutir os critérios de sua distribuição.
O papel do Estado no apoio à cultura é fundamental para a democracia e para o desenvolvimento econômico. A percepção precoce dessa importância está na raiz tanto da política cultural francesa como da organização do cinema americano como indústria.
Não se trata de argumento estatista: mesmo os países emblemas do liberalismo compreenderam que a política cultural é decisiva na globalização. Para o Brasil, a política cultural é central para diminuir a desigualdade, para a qualidade na educação, para a ampliação do acesso a leitura, museus e cinema.
Mas a legislação precisa ser renovada. No caso da Lei Rouanet, o MinC apresentou um diagnóstico: só 3% dos proponentes captam mais da metade de toda renúncia, contemplando poucos artistas.
A almejada parceria público-privado não ocorre: 95% do montante geral é oriundo de renúncia fiscal, e não se estabeleceu um genuíno empresariado cultural: ao contrário, aumentou a dependência. Do dinheiro público disponível para a cultura, a renúncia fiscal predomina, o que dificulta planejamento e metas de longo prazo.
Os números de exclusão de cinema e museus continuaram assombrosos, um quadro em que milhões de brasileiros estão apartados do consumo de bens culturais, segundo dados do IBGE.
Depois de anos de discussão com a sociedade brasileira, o projeto de lei nº 6.722/2010 (Procultura) foi enviado pelo governo Lula ao Congresso Nacional em janeiro de 2010. Lá tramita e já foi aprovado por unanimidade na Comissão de Educação e Cultura da Câmara.
Por meio de um pacto que produzimos, governo, artistas, instituições e patrocinadores concordaram em aumentar o dinheiro das próprias empresas no custeio. A nova lei equaliza a renúncia fiscal a partir de critérios que permitem compor de forma racional o dinheiro público e privado.
Cria mecanismos de desconcentração e valorização do mérito e estabelece fundos de apoio direto a artistas, adotando uma grade de critérios para avaliar a necessidade de dinheiro público, projeto a projeto. A nova lei estimulará a boa convivência entre democratização e meritocracia.
Quanto ao medo de "dirigismo", a sociedade brasileira já possui instituições públicas com credibilidade na análise de projetos, sem ameaçar a liberdade de expressão.
Nossa democracia está madura e vigilante para barrar eventuais abusos. A pesquisa científica produzida na universidade brasileira, produto da subjetividade, é avaliada e financiada pelo Estado; ninguém reclama de dirigismo e o sistema funciona. Logo, transformar esse modelo não só é possível: é imprescindível. Basta aprovar o projeto que está no Congresso.
ALFREDO MANEVY, doutor em audiovisual pela USP, foi secretário-executivo do Ministério da Cultura (2008-2010).
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