31 de março de 2020

Mensagem ao Povo Brasileiro - Djalma Maranhão #DitaduraNuncaMais

Mensagem ao Povo Brasileiro
Montevideo, julho de 1965

Prefeito de Natal em dois mandatos, Deputado Federal e Estadual honrei a confiança popular. Realizei uma gestão administrativa voltada para o bem do povo. Toda cidade do Natal é testemunha do meu trabalho e do meu devotamento.

Fui deposto porque luto contra aqueles que submetem as interesses econômicos do Brasil à voragem insaciável dos grupos estrangeiros, responsáveis direitos pela inflação e consequentemente pelo estado de miséria em que vive a maioria do nosso povo. Defendí a reforma agrária e a limitação da remessa de lucros dos trustes para o exterior.
 É o destino histórico de descender de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, fundador da minha cidade e que na guerra para a expulsão dos franceses foi o primeiro brasileiro nato a exercer o comando de general. General nacionalista.

Meu crime maior foi alfabetizar vinte e cinco mil crianças, na pioneira campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, reconhecida pela UNESCO como válida para as regiões subdesenvolvidas do mundo, em um país de humilhante maioria de analfabetos e lutar para dar ao povo, acesso às fontes do saber, no plano de democratização da cultura. De fazer Feira de Livros, de construir uma Galeria re Arte e estimular o Teatro do Povo. De restaurar e promover a revalorização dos Autos Folclóricos. De abrir Bibliotecas Populares que estabeleceram recordes nacionais de empréstimos de livros, numa cidade que não tinha nenhuma biblioteca pública.

Fiquei ao lado da Constituição e da Lei e mantive solidariedade ao Presidente João Goulart quando irrompeu o movimento sedicioso que subverteu as instituições do país.

Fui traído pelo Comandante da Guarnição de Natal, Coronel Mendonça Lima, que me assegurou lealdade ao Presidente da República e que, se bandeando para o golpe, após invadir a Prefeitura com forças militares, convocou-me ao Quartel General oferecendo-me a liberdade em troca da minha renúncia. Recusei em nome da minha honra e do respeito ao povo que me conferira o mandato por mim desempenhado.

Preso, fui entregue ao IPM dirigido pelo Capitão Ênio de Lacerda. Este, com técnicas da Gestapo de Hitler, devassou a Prefeitura, Sindicatos, Estrada de Ferro, Correios e Telégrafos e Diretórios Estudantis, prendendo dezenas de pessoa se chegando a torturar presos e políticos. Enodoava, assim, o Exército de Caxias do qual enverguei a gloriosa farda, marchando em São Paulo nas lutas de 1932, nos anos de minha juventude.
Fui preso em cela exígua com sentinela de fuzil embalado à vista. Permaneci vários meses, sendo transferido para estabelecimentos militares em Natal, Fernando de Noronha e Recife. Nos vários inquéritos a que fui submetido, reafirmei a convicção de meus ideáis a favor da soberania econômica do Brasil, assumindo total responsabilidade por todos os atos realizados no governo do município.

Libertado por decisão memorável no Supremo Tribunal Federal dirigi-me ao Rio de Janeiro e publiquei no Correio da Manhã manifesto ao povo brasileiro, onde denunciei o golpe, reafirmando minha fé na Democracia e no destino do Brasil.

Demitido do meu lugar efetivo de Diretor do Departamento de Documentação e cultura, por ato de Aluízio Alves, Governador a quem ajudei a eleger, entregando-lhe a votação de Natal, e sem garantias, numa fase de arbítrio, exilei-me no Uruguai.

Recuo no tempo e vejo Juvenal Lamartine em 1930, deposto do cargo de Governador do Rio Grande do Norte, abrigando-se na Embaixada francesa e depois exilando-se no solo sagrado da França. Em 1937 João Café Filho, o vitorioso de 1930 tem o seu mandato extinto pelo Estado Novo asilando-se na Argentina. Através do processo de redemocratização – porque as ditaduras não são eternas – Juvenal Lamartine e Café Filho retornaram à vida pública e aos braços do povo norte-riograndeses, voltando a exercer poderosa liderança política.

Agradeço, sensibilizado, à Igreja Católica na pessoa de D. Eugênio Sales que procurou visitar-me, não o conseguindo em virtude de minha prisão ser incomunicável, no primeiro mês. Viajando para Roma para participar do Concílio Ecumênico, enviou dois sacerdotes à minha residência para confortar minha família. Posteriormente recebi a visita de Monsenhor Alair Vilar, Vigário Geral da Arquidiocese. Repito aqui trechos da mensagem de Natal e Ano Novo que enviei ao Monsenhor Alair Vilar: “A Igreja de hoje, mais do que nunca, é a Igreja dos Pobres, na sábia afirmação de João XXIII, com mais fome e sede de Justiça. O desespero e o desabafo dos humildes, em busca de Pão e Paz acham, sempre que procuram, guarida sob a Cruz em que se encontra o corpo lacerado do CRISTO.
Breve seguirei para o exílio no Uruguai, na tentativa de recuperar a saúde. Peço que a Igreja olhe, também para minha família que fica na Pátria aguardando meu regresso”.
Agradeço ao Rotary, ao Lions e demais instituições liberais; às classes empresariais; à magistratura e ao magistério; à imprensa e aos desportistas pelos créditos de confiança tantas vezes cedidos a minha administração.
Guardo o conforto das lições que a Maçonaria transmitiu ao meu pai – e que ele plasmou na minha formação – uma instituição que se torna mais humana, na medida em que mais se solidariza com a dor universal. Nesta hora os Pedreiros Livres não me faltaram com a sua solidariedade.
Aos escoteiros, meus irmãos, mando o meu “Sempre Alerta”. A semente do escotismo renasce todos os dias no coração da juventude.
Relembro que a Prefeitura do Natal e a Universidade do Rio Grande do Norte somaram esforços em benefício do povo e se identificaram pela simbologia da honestidade, da honesta aplicação de suas verbas. No campo intelectual a Universidade é a marca mais forte que ficará gravada no tempo e o Reitor Onofre Lopes é o denominador comum e dínamo deste empreendimento.
Levo a minha palavra de confiança, particularmente, aos brasileiros do Rio Grande do Norte, aos da minha querida Cidade do Natal, da qual fui Prefeito duas vezes e tive a honra de representar seu povo no Parlamento.

Ao Supremo Tribunal Federal, ao deputado Carvalho Neto, meu advogado e ao Senador Dinarte Mariz que hospedou meu filho em Brasília e minha esposa no Rio de Janeiro, dando apoio moral, o meu agradecimento.

Saúdo a inteligência da minha terra, nas reservas de inspiração e na força criadora dos seus intelectuais na Pessoa do Presidente da Academia de Letras, Manoel Rodrigues de Melo, destacando a coragem cívica do Desembargador João Maria Furtado.

Dirijo-me aos operários e recordo, permanentemente agradecido, que minha candidatura a Prefeito foi lançada em manifesto subscrito por todos os Sindicatos de Natal.
Dirijo-me aos estudantes e relembro que nas horas cruciais contei com a solidariedade unânime dos seus Diretórios.

Reverencio os velhos, sol poente de uma geração e dirijo-me às crianças, sol nascente das madrugadas, neste manifesto, que poderá ser também, um testamento.
Caso venha a morrer no exílio, peço que meu corpo seja transportado para Natal. O caixão coberto com a bandeira da Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, e que, na hora em que o corpo baixar à sepultura, as crianças da minha cidade, que se alfabetizaram nos Acampamentos Escolares cobertos de palhas de coqueiros, cantem nosso Hino de Pé no Chão.

Companheiros, meus irmãos: Mesmo distante continuo presente na Cidade. O vento trará minhas palavras e cada alvorada recordará a claridade da minha luta, permanente lembrada pelo coração do povo.

Fonte DHNET

30 de março de 2020

Salve Pedro Tierra!

Nessa Vigília pela democracia, há 56 anos do golpe militar que mergulhou o Brasil numa era de violência e terror de Estado, silenciar sobre aquele período é um crime. Reconstruir a memória, um dever:

 “Não guardava ideia de como viera parar nesta cela: um retângulo frio. Dois metros e meio por um e vinte. Completamente nua. Sem colchão. Com uma privada turca ao fundo. Primeiro dia. E o recomeço... O capuz verde-oliva. A sala escura. A Sinfonia número 2 de Sibelius, o dínamo, os jacarés presos nas orelhas, nos testículos, entre os dentes. Gosto de vidro quebrado a cada descarga elétrica. A jornada vertiginosa, sob a luz dos refletores. Circular. Suspensa. Interminável.                                   

O prato de comida farto, intragável, retorna intocado. Segundo dia. Um dia a mais. Novamente a noite, com seu cortejo de assombros. Do terceiro dia? Quantos? Dissolvida a noção de tempo. O Exercício da dor operando sua metódica destruição. Até me reduzir a ossos e medo. Outro dia. Outra noite? As mesmas perguntas quebram o silêncio feito marretas. Sob o capuz, não se percebe de onde virá o próximo golpe. O corpo é todo tensão. Como o arco de um violino. “Tua carne será apenas tua dor”, repito comigo o que um dia se converterá em verso. O silêncio se recompõe. Súbito. Como se respondesse a um comando invisível. A volta da Sinfonia número 2, em Ré Maior, de Sibelius, vim a saber anos mais tarde, repetida a toda altura, como se atada às mãos de um maestro enlouquecido que não manejasse a batuta do regente, mas alucinadamente a manivela do dínamo. Horas sobre horas, noites sobre noites: até imprimir os acordes na medula da alma.”       

(Pedro Tierra, “Narrativas dos anos de chumbo”, Autonomia Literária e Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2019).

24 de março de 2020

A casa onde a fome mora


Poeta Potiguar Antonio  Francisco
A Casa que a Fome Mora

Eu de tanto ouvir falar
Dos danos que a fome faz,
Um dia eu sai atrás
Da casa que ela mora.
Passei mais de uma hora
Rodando numa favela
Por gueto, beco e viela,
Mas voltei desanimado,
Aborrecido e cansado.
Sem ter visto o rosto dela.

Vi a cara da miséria
Zombando da humildade,
Vi a mão da caridade
Num gesto de um mendigo
Que dividiu o abrigo,
A cama e o travesseiro,
Com um velho companheiro
Que estava desempregado,
Vi da fome o resultado,
Mas dela nem o roteiro.

Vi o orgulho ferido
Nos braços da ilusão
Vi pedaços de perdão
Pelos iníquos quebrados,
Vi sonhos despedaçados
Partidos antes da hora,
Vi o amor indo embora,
Vi o tridente da dor,
Mas nem de longe via a cor
Da casa que a fome mora.

Vi num barraco de lona
Um fio de esperança,
Nos olhos de uma criança,
De um pai abandonado,
Primo carnal do pecado,
Irmão dos raios da lua,
Com as costas seminuas
Tatuadas de caliça,
Pedindo um pão de justiça
Do outro lado da rua.

Vi a gula pendurada
No peito da precisão,
Vi a preguiça no chão
Sem ter força de vontade,
Vi o caldo da verdade
Fervendo numa panela
Dizendo: aqui ninguém come!
Ouvi os gritos da fome,
Mas não vi a boca dela.

Passei a noite acordado
Sem saber o que fazer,
Louco, louco pra saber
Onde a fome residia
E por que naquele dia
Ela não foi na favela
E qual o segredo dela,
Quando queria pisava,
Amolecia e Matava
E ninguém matava ela?

No outro dia eu saio
De novo a procura dela,
Mas não naquela favela,
Fui procurar num sobrado
Que tinha do outro lado
Onde morava um sultão.
Quando eu pulei o portão
Eu vi a fome deitada
Em uma rede estirada
No alpendre da mansão.

Eu pensava que a fome
Fosse magricela e feia,
Mas era uma sereia
De corpo espetacular
E quem iria culpar
Aquela linda princesa
De tirar o pão da mesa
Dos subúrbios da cidade
Ou pisar sem piedade
Numa criança indefesa?

Engoli três vezes nada
E perguntei o seu nome
Respondeu-me: sou a fome
Que assola a humanidade,
Ataco vila e cidade,
Deixo o campo moribundo,
Eu não descanso um segundo
Atrofiando e matando,
Me escondendo e zombando
Dos governantes do mundo.

Me alimento das obras
Que são superfaturadas,
Das verbas que são guiadas
Pro bolsos dos marajás
E me escondo por trás
Da fumaça do canhão,
Dos supérfluos da mansão,
Da soma dos desperdícios,
Da queima dos artifícios
Que cega a população

Tenho
pavor da justiça
E medo da igualdade,
Me banho na vaidade
Da modelo desnutrida
Da renda mal dividida
Na mão do cheque sem fundo,
Sou pesadelo profundo
Do sonho do bóia fria
E almoço todo dia
Nos cinco estrelas do mundo.

Se vocês continuarem
Me caçando nas favelas,
Nos lamaçais das vielas,
Nunca vão me encontar,
Eu vou continuar
Usando o terno Xadrez,
Metendo a bola da vez,
Atrofiando e matando,
Me escondendo e zombando
Da Burrice de vocês.