Nessa Vigília pela democracia, há 56 anos do golpe militar que mergulhou o Brasil numa era de violência e terror de Estado, silenciar sobre aquele período é um crime. Reconstruir a memória, um dever:
“Não guardava ideia de como viera parar nesta cela: um retângulo frio. Dois metros e meio por um e vinte. Completamente nua. Sem colchão. Com uma privada turca ao fundo. Primeiro dia. E o recomeço... O capuz verde-oliva. A sala escura. A Sinfonia número 2 de Sibelius, o dínamo, os jacarés presos nas orelhas, nos testículos, entre os dentes. Gosto de vidro quebrado a cada descarga elétrica. A jornada vertiginosa, sob a luz dos refletores. Circular. Suspensa. Interminável.
O prato de comida farto, intragável, retorna intocado. Segundo dia. Um dia a mais. Novamente a noite, com seu cortejo de assombros. Do terceiro dia? Quantos? Dissolvida a noção de tempo. O Exercício da dor operando sua metódica destruição. Até me reduzir a ossos e medo. Outro dia. Outra noite? As mesmas perguntas quebram o silêncio feito marretas. Sob o capuz, não se percebe de onde virá o próximo golpe. O corpo é todo tensão. Como o arco de um violino. “Tua carne será apenas tua dor”, repito comigo o que um dia se converterá em verso. O silêncio se recompõe. Súbito. Como se respondesse a um comando invisível. A volta da Sinfonia número 2, em Ré Maior, de Sibelius, vim a saber anos mais tarde, repetida a toda altura, como se atada às mãos de um maestro enlouquecido que não manejasse a batuta do regente, mas alucinadamente a manivela do dínamo. Horas sobre horas, noites sobre noites: até imprimir os acordes na medula da alma.”
(Pedro Tierra, “Narrativas dos anos de chumbo”, Autonomia Literária e Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2019).
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