Mover-se em meio ao torpor
O Povo: 24/04/2020
Artigos • Opinião
Tenho esforçado para não me entristecer com a onda do coronavírus e suas dicotomias que margeiam da solidão à companhia, da ignorância à civilidade, da estupidez à delicadeza, da ganância à fraternidade. É uma peleja.
Mas devo confessar: estou com o peito apertado. Um nó na garganta. Coisas a ver com a brevidade da vida e a infinitude das horas, como se o planeta não desse mais conta de suportar os humanos. Ao tempo em que imagino essa travessia como a possibilidade para “uma nova consciência e juventude”, também sou tomado por inquietações. Aí a canção “Hermana duda” do uruguaio Jorge Drexler ecoa: “passarão os anos / mudarão as modas / virão outras guerras / perderão os mesmos (...) passarão os discos / subirão as águas / mudarão as crises / pagarão os mesmos”.
Mudarão as crises, pagarão e perderão os mesmos. Parece que as águas estão subindo rápida e turvamente, podendo afogar os mesmos que ao longo da história são explorados. Temo pela limitação dos direitos básicos dos mais vulneráveis num panorama de aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas no planeta. Para piorar, algumas pessoas no mundo fazem dessa pandemia uma guerra santa-ideológica de interesses políticos, mobilizando manadas. A política ganha feições de seita, a religião de ciência, a ditadura de democracia, o desvario de sanidade e a ignorância de luz.
É isso que anda apertando meu peito. Mas é também o que me comove. Comover é mover com, é se movimentar de dentro para fora e mobilizar o outro no mundo. Então vambora! Como proseia Guimarães Rosa, a vida quer da gente é coragem. Como canta Nelson Cavaquinho, o sol há de brilhar mais uma vez. Como verseja Mario Quintana, eles passarão, nós passarinhos. Como escreve Eliane Brum, devemos lutar pelo futuro pós-vírus e não voltar à normalidade. Como nos convoca Ailton Krenac, nossa missão é adiar o fim do mundo. Como nos inspira Paulo Freire, é preciso esperançar para a gente levar adiante e juntar-se com outros para fazer de modo diferente. Pois a luta continua, sabemos que a Terra é Redonda e que não conseguirão apagar os nossos amanheceres nem os cantares das crianças e dos passarinhos.
Fabiano dos Santos Piúba
Nascido em Currais Novos - RN
Escritor, mestre em História, doutor em Educação e secretário da Cultura do Estado do Ceará
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