24 de outubro de 2009

A grande imprensa e o profissionalismo. Profissionalismo?

A pauta para investigar a grande imprensa hoje pode ser a seguinte: até onde os coleguinhas - fala-se daqueles mais velhos - acreditam no que escrevem? E por que mesmo que a todo o momento exigem a chancela patronal para exporem seus pontos de vista? Onde é mesmo que a palavra "profissionalismo" entra nesta história?

Enio Squeff

Das críticas que se faz à grande imprensa, há sempre uma constante: a mídia teria abdicado de toda e qualquer imparcialidade, para cumprir o mandamento patronal de jamais conceder ao governo; ou à imagem que ela própria construiu do governo. Fala-se pouco ou quase nada de um problema cada vez mais crônico - a absoluta, a quase inacreditável falta de profissionalismo na composição do que cada dia se caracteriza mais em mais, como tão somente, armações jornalísticas. Ao que parece, aquele aforismo de Voltaire :"Menti, menti, algo restará" seria ainda aplicável num mundo informatizado e, bem pior, num país em que a cada ataque ao presidente Lula, mais e mais a sua popularidade aumenta.

Franklin Martins, quando ainda não era ministro, disse sobre a revista "Veja" (de quem ele ganhou um processo por injúria e difamação), que a "Veja era a maior inimiga da Veja". Seria de se lembrar a recente capa da revista em que à evidência de que o Itamaraty iria vencer a parada em Honduras, era insistiu em que a condução do "affair" pelo Ministério de Relações Exteriores do Brasil, era um rotundo fracasso? Será que algum jornalista ou editor da revista acha mesmo que sem o apoio expresso dos Estados Unidos, os golpistas de Honduras conseguirão se impor?

Nenhuma destas perguntas são respondíveis. Fica só a evidência de que não apenas a Veja mas os jornais e revistas do País, em sua esmagadora maioria, são mesmo inimigos de si próprios. O fato intriga. Para qualquer sujeito de meia idade que cumpriu boa parte de seus anos de jornalismo nos jornalões e revistonas brasileiras, nunca era evidente, que o que se queria seria, realmente, a verdade. Talvez seja especioso discutir se grande parte da população brasileira era a favor da ditadura militar; no entanto, era razoável que se admitisse o fato. Só que não eram poucos os jornalistas mais velhos, os decanos das redações, que, mesmo não sendo favoráveis à milicada e ao seu regime, insistiam na tese de que o povão bem que o tolerava. Vivia-se o pleno emprego: que diferença fazia que, além dos presos comuns de sempre, jovens militantes e velhos homens de esquerda, estivessem sendo massacrados nos presídios? Para quem trabalhou na mídia da época, era decepcionante, mas era isso mesmo. Não havia como escamotear o fato, a inventar uma revolta que o povo não sentia.

Digamos, então, que a pauta para investigar a grande imprensa hoje deva ser a seguinte: até onde os coleguinhas - fala-se daqueles mais velhos - acreditam no que escrevem? E por que mesmo que a todo o momento exigem a chancela patronal para exporem seus pontos de vista? A isso soma-se um fato ainda mais constrangedor: onde é mesmo que a palavra profissionalismo entra nesta história, se a dimensão da farsa é muito maior que as evidências que inventam o contrário?

São tantos os fatos, que é até fastidioso lembrá-los: não haveria memória para tanto. Pode-se, contudo, tomar qualquer caso ao acaso. Até quando se os rememora, alguns são simplesmente estarrecedores. Na época em que os jornais e revistonas estamparam em letras garrafais a famosa compra do dossiê, em que o hoje governador Serra teria sido investigado, tudo circulou em torno do montante do dinheiro mobilizado. Teoricamente, o pagamento adviria de uma estatal ou de qualquer fonte nunca esclarecida. Até aí, porém, é de se perguntar se essa seria toda a questão.

Pois o inacreditável, em todo o caso, foi o fato certamente inédito na história do jornalismo mundial: eis que a compra do dossiê seria muito mais importante que o dossiê em si. Que jornalismo pode se explicar como tal, ao não se preocupar com as possíveis revelações contidas no tal dossiê, se isso sequer entrou em cogitação? Tudo bem: como disse o presidente Lula -o único que disse alguma coisa, aliás - não havia nada no tal dossiê que realmente pudesse interessar a quem quer que fosse. Mas afora a consideração presidencial, o interesse jornalístico impositivo pelo que o dossiê pudesse conter - esse não foi mencionado ou sugerido uma vez sequer. Era mentira, era irrelevante em princípio, ponto final.

As coisas extrapolam o mínimo. No factóide que foi a denúncia da ex-secretária da Receita Federal que teria se encontrado com com a ministra Dilma Roussef , ocasião em que esta lhe teria pedido "pressa" na apuração de supostos crimes cometidos por José Sarney, a ninguém foi dado saber do princípio jurídico que o "ônus da prova" estaria com a acusadora e não com a acusada. E que quando o Planalto, enfim, encerrou a questão - justamente pela razão que a Justiça lhe dava - não faltaram professores a impingir à ministra a suspeita das irregularidades. Um professor da USP abandonou qualquer bom senso ao insistir, numa entrevista na rádio Cultura, que cabia à Ministra "dirimir as suspeitas".

Pois eram "evidentes", pela prova nenhuma, que a ex-secretária tinha apresentado, que a ministra era suspeita, em princípio. Uma comentarista da CBN, ao admitir que a tal ex-secretária não tinha conseguido convencer ninguém na CPI, nem por isso hesitou um só instante de reiterar, mesmo assim, que a ministra teria "de se explicar". Não é o caso de se exigir um mínimo de proficiência profissional - mas, convenhamos, o despudor tem limites.

Falar em despudor talvez seja de se supor que ele exista. E que a partícula de negação - des - só se aplicasse ao caso, excepcionalmente. Pois haveria ainda que rememorar a interpretação do famoso "top-top" do assessor especial do presidente, o professor Marco Aurélio Garcia, que teria sido flagrado a dirigir os gestos obscenos "às vítimas do avião da TAM" (sic). Nenhum jornalista minimamente probo assacaria que os gestos do assessor da presidência, feito na privacidade de seu gabinete, deveria ser lido como tendo sido endereçado aos passageiros mortos no desastre aéreo. As imagens diziam o que as televisões e as rádios quiseram ver, não o que era mais que evidente: que o sr. Marco Aurélio Garcia xingava justamente as interpretações da grande imprensa; que só faltou dizer que quem tinha derrubado o avião teria sido o presidente Lula. No entanto, propalada a versão mentirosa, tudo ficou ao vento. E aí sim, em conformidade com a máxima voltariana, de que a mentira, repetida muitas vezes, pode alçar vôos mais altos, principalmente para os incautos que gostam de se iludir.

Talvez se possa inferir que tudo da grande imprensa seja mentira -e então nada do que é veiculado pela mídia seria verdadeiro. É um evidente exagero - mas não parece um evidente exagero arriscar que a divulgação do conteúdo da prova do Enem, veio muito bem a calhar. obrigado. Eis que uma empresa jornalística que comanda a gráfica de onde foram surrupiadas as provas, não tem nada a ver com o fato, embora seja, como quase toda a mídia, "de oposição". O que até pode ser verdadeiro, ou seja, que o gráfica não tem nada a ver com o fato. Mas imaginar que alguém possa supor, tranqüilamente, que os autores do crime pensassem em tirar dinheiro do "Estadão"- para o qual foi revelado o conteúdo do Enem- e não de gente que, realmente, pudesse e tivesse interesse em comprá-lo, vai uma distância que só o delegado que presidiu o inquérito não quis ver. Mas que, de qualquer forma, adiou a questão da solução dos vestibulares para um futuro, que talvez contemple o governo Lula com "mais essa": ele não avançou em nada na questão dos vestibulares. E a rapidez com que algumas universidades descartaram se vincularem ao Enem, pode ser lida, sim, como o motivo para não dar ao governo federal qualquer mérito por mexer com o candente problema do vestibular. Ou seja, nada de inquirições para o caso - tão somente a aceitação dos fatos. Não é coisa de profissionais de jornalismo certamente : mas não o será de uma imprensa que a todo o momento se mostra inegavelmente golpista?

Quem tem cerca de 60 anos, já viu esse filme algumas vezes. E como se dizia antigamente, não passa de um tremendo abacaxi.

P.S. Talvez fosse o caso de se ressaltar que a grande imprensa tem o poder de ainda influir sobre a cultura do Brasil. E que os artistas são os primeiros a perderem com isso. Dói, mas é isso mesmo. Daí, entretanto, tantos intelectuais se jogarem à execração do futuro (não é preciso mencioná-los, eles estão nos jornalões a vociferarem contra o governo Lula) só se explica por não acreditarem em si mesmos. O que só confirma Beethoven na sua crítica aos poetas (que vale para todos os que trocam tudo por um espaço na mídia brasileira): eles amam em demasia as lantejoulas da corte para serem levados a sério. A começar pelo futuro.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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