30 de setembro de 2009

Paulo Freire, 88: a memória possível diante do esquecimento programado

Luiz Roberto Alves*



Neste dia 19 de setembro o educador Paulo Freire completaria 88 anos, pois nascera em 19 de setembro de 1921. Na semana dedicada à democracia, nada melhor do que associar o tempo do mestre ao tempo da cultura democrática.



Aquele que o filósofo Roger Garaudy chamara (nos anos 70) de “o maior pedagogo do nosso tempo” está justamente esquecido pelas rodas oficiais contemporâneas, educacionais e políticas. Não, não se trata de engano... O advérbio justamente foi usado com intenção.. Paulo Freire é pensador da sociedade liberada, autônoma e autonomizadora de todos os homens e mulheres, adultos e jovens. Portanto, nesta passagem globalizante em que se obedece a dogmas e doutrinas de mão única e na qual milhões (ou bilhões) de mentes e corpos se conformam no interior da espiral informativa transformada em mito de interesse, o mestre não poderia ser lembrado e vivido em suas idéias e propostas. Há coerência no esquecimento, pois sua lembrança deveria significar seu enquadramento. Quem o lê, no entanto, sabe que o mestre não é “enquadrável”. Provavelmente, seus textos e falas nos apoiarão quando dermos novo passo nas leituras de palavra e mundo que nos lancem para fora da presente fornalha política, que também é fornalha ecológica.



Convém, pois, considerar fenômenos do momento vivido nos vários continentes. Em primeiro lugar, o acúmulo da informação de base tecnológica, o esgarçamento dos territórios de convivência e dialogia social e a fortíssima repressão da insegurança unem-se para tornar opaca a importância da educação não-direcionada e não-adestradora. A liberdade, por sua vez, é quase um pecado na sociedade do terror-sedução e os atos de aprendizado de educandos e educadores (que são para Paulo Freire a base da ação cultural) tanto se enfraquecem pela ruptura – e incultura - dos (des)encontros como são mediados por uma parafernália tecnológica capaz de deslocar significados segundo os interesses de plantão. Em decorrência, fica problematizada a leitura de mundo e a leitura da palavra, seguida pelo agravamento da disputa econômica dos mercados da cultura, que determinam as leituras e os suportes de leitura. Nesse panorama, a educação entendida como construção transformadora do ser e da sociedade pode perder o seu sentido, sua ontologia, visto que perde tanto referências como significação para os projetos de segurança, para a maquinaria eletrônica, para o adestramento pragmático. Sabemos que a educação poderia conter essas realidades e trabalhar com elas, mas jamais perder-se nelas. Pior é que essa perda de sentidos implica perda de orçamentos do Estado e da razão social do fenômeno educativo nos diversos espaços políticos em que são tomadas decisões. Isto é, a educação perde substância política. Urge, pois, a construção e/ou reconstrução do melhor antídoto para a perda de sentidos da educação, isto é, a pedagogia desenhada e vivida em Paulo Freire.



Cabe, por isso, garantir a memória, sinalizar, construir índices dos sentidos da obra político-pedagógica que percorreu todos os continentes e cujos ensinamentos motivaram pessoas, grupos e organizações a empreenderem múltiplas ações culturais pela liberdade, tais como projetos de alfabetização, construção de círculos de cultura, reflexões libertadoras de jugos militares e outros movimentos de emancipação.



Reconhece-se, no entanto, que a cantilena de mão única, o monocórdio liberal já era envolvente e sedutor mesmo na década de sua morte (1997). No último livro publicado em vida, 1996, Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire enfrenta o cenário que o faria esquecido. De imediato, vê que está diante de novidades condicionadas e determinadas pelo neo-liberalismo vitorioso. O interessante é que ele se sente, depois de décadas de amor e rebeldia, enfurecido. E o diz, já nas primeiras páginas: “ Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia.” (...) Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo.”



Ocorre que Freire foi capaz de descobrir o objeto de sua ira. Ao contrário de muitos de nós, hoje, não caiu na tentação sedutora de tergiversar sobre a geléia geral contemporânea, na qual desemprego, marginalização, analfabetismo e outros reconhecidos males tornam-se fatalidades tornadas naturais no processo modernizador e na mudança dos modos de produção. Ele não se enganou. Por isso, seu pequeno livro retoma temas caros das obras anteriores, mas fortalece a tonalidade, numa ação diretamente oposta ao enfraquecimento natural do corpo. Seu espírito eleva-se na marcação do valor dialogal do ato de ensinar e aprender, direito e dever tanto de professores como de alunos/as, bem como não dá lugar a meias-medidas quando assevera que é um ato ético o de não acreditar que o professor pode “transferir conhecimento ao aluno”. Ao contrário, insiste no diálogo. E o entende assim: “ A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles é dialógica. Aberta, curiosa, indagadora e não apassivada...”



Há um texto da obra póstuma de Paulo Freire, Pedagogia dos Sonhos Possíveis, 2001, p. 204, organizada por Ana Maria Freire, que é símbolo de método e conteúdo para projetos arrojados de educação contínua e de gestão social. Dirigida ao educador, à educadora, de fato a mensagem alcança toda a vida social. Um conjunto de palavras-gestos capazes de mudar a economia, a política e a cultura. Daí o risco de seu próprio esquecimento no tempo presente. Esta página vai aqui lida e parafraseada, como o apelo e o sonho do mestre – que deveriam ser nossos - para que não percamos o bonde da história neste momento que desafia o Brasil. São cinco pontos, síntese de sua experiência. Assim, quem educa, ou faz política, deve:



A. Respeitar todas as pessoas envolvidas na ação educacional e política em sua identidade cultural e de classe. Portanto, não considerar ninguém como massa, beneficiado ou necessitado, mas sim sujeito da história local e do grupo com que compartilha um destino. Mudar, pois, plenamente, a ótica da gestão de política.

B. Considerar os saberes da experiência e torná-los vividos/convividos, por meio da opinião, crítica, escolha, juízo e opção. Os envolvidos em qualquer projeto ou programa devem ter o direito de se apropriarem dos conhecimentos e se educarem mutuamente. Em conseqüência, não criar ordens que sejam vistas pela ótica do emissor, mas do receptor. Também não dar preferência às leis em si; ao contrário, considerar as suas conseqüências na vida cotidiana das pessoas e grupos sociais.

C. Trazer à tona, para discussão coletiva, todas as questões, por mais delicadas que sejam, a fim de que o espírito crítico e a participação permitam a tomada de decisões compartilhada. E que as mais altas autoridades conheçam detidamente todos os fatos, problemas e contradições, para evitar o engano e a burla.

D. Pensar continuamente a própria prática, o que significa um processo de avaliação criador de atitude crítica, indispensável para a seqüência de novas práticas e novos avanços. Alterar toda a modernidade/modernização de aparência e colocar o tempo presente a serviço do que as maiorias consideram indispensável, vital, ético.



Paulo Freire viu nas pessoas que narraram suas histórias e nos que contaram e leram a vida os sentidos de crescimento de consciência e impulso do amor. O Brasil que localizou em 1960, 1980 e 1990 continuou exigindo posturas fundamentais: crítica sempre mais funda e amor ao diálogo. A primeira atitude verticaliza o senso de injustiça e busca mudar até as últimas conseqüências; a outra abre-se a horizontes em que sempre cabe mais um, em que jamais se excluem direitos, onde nunca há descartáveis sociais. No cruzamento, dar-se-á a revolução pacífica, pedagogicamente trabalhada pelos que se reconheceram “gente mais gente” e que resolveram “eticizar” a vida.



*Luiz Roberto Alves, professor e pesquisador da Universidade Metodista e da Universidade de São Paulo. Coordenador da Cátedra de Gestão de Cidades da UMESP.

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