5 de julho de 2009

Por uma nova arquitetura de investimento cultural

Gilberto Moreira Gil*

O processo de formação do Brasil e da sociedade brasileira tem como marca principal a mestiçagem, ou seja, a mistura e a reciclagem permanente de valores, referências, sentimentos, signos e raças. Esta mestiçagem produziu aqui uma cultura tão intensa quanto diversa. E fez das múltiplas expressões culturais do nosso povo o principal fator de diferenciação e de valorização do país no mundo globalizado.

O instrumento básico da mestiçagem brasileira tem sido, desde 1500, a antropofagia cultural, que pode ser definida como o processo pelo qual se absorve, se digere, se transforma e se devolve ao mundo, na forma de novidade, o caldo cultural gerado pela tradição dos que formaram esta sociedade, e pelas influências culturais externas que ela sofreu ao longo dos vários séculos de sua existência.

No vasto e maravilhoso universo real e imaginário da cultura brasileira pulsa uma produção que vai do erudito ao popular, do pré-histórico ao high-tech, do clássico ao inovador. Uma produção que nasce da criatividade do povo brasileiro, que se multiplica em sua miscigenação racial e cultural, que se aprofunda em sua sensibilidade, que se potencializa em sua disposição para superar as adversidades.

Na era da informação, em que o saber e o simbólico tornam-se os principais ativos de uma economia, de um país, de uma empresa e de qualquer organização, grupo ou comunidade, a vitalidade e a diversidade cultural são decisivos. A cultura é um tesouro, um ativo social e econômico em permanente estado de transformação, que não pára no tempo e no espaço, e que se revitaliza no diálogo entre tradição e invenção.

Pode-se dizer que a produção cultural, em todas as suas formas e meios, constitui uma das principais economias do Brasil, que deve ser percebida enquanto tal e aproveitada. O samba do Rio de Janeiro, o Carnaval de Salvador e Recife, a festa de Parintins, na Amazônia, assim como o cinema, o teatro e companhia, constituem economias, cadeias produtivas, de alto valor agregado, elevado dinamismo e grande impacto sobre renda e emprego.

É preciso ver a cultura, portanto, como algo essencial, e não como o vaso de flores que ornamenta os salões do poder ou da elite. Trata-se de um propulsor do desenvolvimento do país. De um fator de diferenciação e de competição. Que merece, portanto, ser encarado como prioridade governamental, como prioridade empresarial e individual, e como canal de diálogo vital entre pessoas e instituições.

Muitas pessoas no próprio governo tem dificuldade de compreender o papel da cultura, sua verdadeira dimensão. Não conseguem encaixar a cultura nos rótulos com que trabalham. Não vêem a cultura como política social, política de infra-estrutura ou política industrial. Esta dificuldade tem uma explicação fácil: é porque a cultura encarna tudo isso, ao mesmo tempo: é social, é econômica, e é prazer também.

Neste mundo ainda marcado por injustiças e desigualdades, está provado também que a cultura qualifica as relações sociais e reduz os focos de tensão e violência, elevando a auto-estima e o sentido de pertencimento do indivíduo. Ela liga as pessoas, estimula as trocas, aproxima, identifica, enfim, valoriza aquilo que o ser humano tem de melhor. Faz com que a gente seja mais e queira sempre ir além, experimentando novas possibilidades.

Mas há ainda outra dimensão da cultura, tão importante quanto as demais. A produção cultural também é uma excelente ferramenta de comunicação e marketing, um amplificador de marcas e produtos, uma forma inteligente de conquistar corações e mentes e uma fonte de imagem limpa, rica e positiva para empresas em busca de construção, consolidação ou renovação de marca.

A arte e a cultura estão presentes com tanta intensidade na vida das pessoas, mesmo das mais pobres, excluídas e esquecidas, que nem sempre são percebidas e valorizadas. Assim como o ar que respiramos. Ou como a eletricidade. Dá para imaginar como seria a nossa vida sem a luz elétrica? No entanto, a percepção de sua importância só acontece quando há um apagão. A falta de luz ilumina sua importância.

Assim é com a cultura. Quando ela está presente em nosso dia-a-dia, quando faz parte de nossa cesta básica, não atentamos para a sua importância. Mas tentem imaginar um mundo sem cultura e arte. Imaginem um tempo sem música, sem leitura, sem cinema, sem dança, sem TV… Imaginem um apagão, um blackout cultural. Como seria a vida sem esta fonte básica de alimentação do espírito e da sensibilidade?

Portanto, quando falamos de cultura, falamos da essência da vida humana. De algo tão vital quanto o ar, quanto a própria natureza. Por isso, é necessário conectar a cultura a todas as dimensões da existência, ao que faz o mundo funcionar, sobretudo à economia e aos negócios. Algo tão fundamental precisa de atenção, de cuidado. Precisa do investimento de todos: governos, empresas, organizações não-governamentais, cidadãos.

No caso das empresas, os investimentos em cultura sempre contribuem, de algum modo, para as suas atividades econômicas. Existem inúmeros casos bem-sucedidos de exercício da cidadania corporativa através da cultura; de como os eventos, os bens e os serviços culturais contribuíram para estimular os negócios de várias empresas brasileiras.

Além das empresas que têm na cultura a sua atividade-fim, e que formam o grupo dos agentes econômicos privados da economia da cultura, nada menos do que 1.721 empresas ligadas a outras áreas da economia investiram em atividades culturais ao longo de 2004 usando os benefícios das leis de incentivo do governo federal. Foram 1.940 projetos patrocinados, com um total de R$ 476 milhões investidos.

Há diversos caminhos, possibilidades e instrumentos para investir e diversos modos de encarar este investimento. O nosso modelo de financiamento público da cultura tem uma década de existência e está entre os mais eficientes e democráticos do planeta. Não por acaso, há vários países criando leis como a Lei de Incentivo à Cultura e a Lei do Audiovisual do Brasil.

Há empresas que recorrem à cultura como exercício de responsabilidade social. Há também as que encaram seus patrocínios como instrumentos de relacionamento ou de divulgação de produtos e serviços. Há quem veja as atividades culturais como oportunidades de negócios, de construção de marca ou de revitalização de suas identidades corporativas. Todas estão certas. A cultura é isso tudo, ao mesmo tempo.

Não por acaso, aliás, procuramos nesses mais de dois anos de gestão aprofundar o diálogo com os usuários do modelo de financiamento e aprender com a prática, entender as motivações de produtores e empresários, e por isso identificamos que há aprimoramentos a serem feitos e oportunidades novas a serem aproveitadas. Por isso, o Ministério da Cultura empreendeu um processo nacional de debate sobre este modelo.

Buscamos corrigir distorções e inovar, avançar. Por isso, a Lei de Incentivo tem sido repensada, sempre com o objetivo de elevar os recursos, ampliar o alcance, democratizar o acesso e facilitar o uso por investidores e produtores culturais, além de elevar o grau de qualidade dos projetos apresentados.

Queremos que mais e mais empresas possam investir na cultura brasileira usando o benefício do incentivo fiscal. E, sobretudo, investir diretamente, com recursos próprios. Queremos que o governo, a iniciativa privada, os produtores culturais e os criadores sejam parceiros nesta feliz aventura de desenvolver a cultura do Brasil e da humanidade, fazendo com que seus frutos sejam acessíveis a todos.

Que as empresas brasileiras aumentem seus investimentos em cultura. Oportunidades não faltam. Nosso cinema, nossa música, nosso teatro e nossas artes visuais estão entre as melhores do planeta. Nossas instituições culturais, como os museus e os centros culturais, realizam trabalhos fundamentais de preservação e difusão. Pode-se investir em capacitação, em reflexão, em produção e em circulação de espetáculos, obras e exposições. As possibilidades estão aí. Aproveitem!

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