4 de maio de 2020

Atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro


Atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro

Antonio Albino Canelas Rubim *

Resumo
O texto analisa a atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro (janeiro de 2019 - março de 2020). Ela se caracteriza por ataques à democracia, à cultura, aos agentes do campo cultural, às políticas culturais vigentes entre 2003-2016 e pela tentativa de impor uma cultura autoritária, conservadora e fundamentalista, com valores contrapostos à preservação e à promoção da diversidade cultural, ao respeito à diversidade social e aos diálogos interculturais. A guerra cultural estimulada pela gestão, longe de buscar uma legitima disputa pela hegemonia político-cultural, visa estigmatizar adversários, transformados em inimigos a aniquilar, simbólica e fisicamente, no contexto do estado de exceção vigente no país desde o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016. No entanto, tal dinâmica, combinada e desigual, não conseguiu até agora conformar uma efetiva política cultural, contraposta aquelas construídas no Brasil dos anos democráticos.         

Palavras-chave
Atuação político-cultural, gestão Bolsonaro, Brasil atual, estado de exceção, políticas culturais.

Introdução
O golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de 2018 instalaram no Brasil um estado de exceção com repercussões em toda a sociedade e com retrocessos nas políticas públicas. O texto trata do impacto da nova conjuntura no campo cultural, por meio de observações iniciais sobre a atuação da gestão Messias Bolsonaro. A análise do processo em andamento implica no recurso tanto a experiência vivida, quanto à utilização de informações de jornais, revistas e sites, além de acionar a pequena bibliografia já existente sobre os acontecimentos em estudo.   
       
O Brasil viveu entre 2003 e 2016 um momento singular. Neste período histórico as classes dominantes não dominavam o governo nacional, como aconteceu durante séculos, mas continuavam no poder no Brasil. Com limitações – devido às circunstâncias, alianças e conciliações – o governo desenvolveu políticas de distribuição para combater a enorme desigualdade social existente e políticas de reconhecimento, buscando tornar visíveis e dotar de legitimidade os setores oprimidos, sempre excluídos na vida nacional.

Entre 2003 e 2016, com acertos e erros, ocorreram políticas voltadas às diversidades social e cultural brasileiras, ainda que elas assumissem tons desiguais nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2010-2016). Dois momentos diferenciados foram então vivenciados pelos brasileiros: o período do presidente Lula e dos ministros da cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, com atuação político-cultural potente e o governo da presidenta Dilma e suas ministras da cultura, Ana de Holanda e Marta Suplicy, com patamar de intervenção político-cultural rebaixado (Rubim, 2015; Calabre, 2015).     

Apesar das ambiguidades e contradições, a inovação de políticas culturais, a criatividade de programas e projetos e a amplitude da participação de agentes culturais colocaram o Ministério da Cultura em um horizonte político nunca alcançado na história da nação, com destaque para o governo Lula e a gestão ministerial de Gilberto Gil. O Brasil, entre 2003-2008, viveu o período mais brilhante das políticas culturais no país, seja por meio do desenvolvimento de múltiplas experiências criativas, seja pela ampliação dos estudos sobre políticas culturais. 

Ainda que em ritmos desiguais, marcados por avanços e retrocessos, ambiguidades e posicionamentos, o Brasil recente (2003-2016) colocou na agenda o tema da cultura e das políticas culturais. A riqueza dessa atuação teve repercussão posteriormente na atitude majoritária do campo cultural contrária ao golpe (2016), à gestão Temer (2016-2018) e aos desdobramentos políticos, decorrentes da fraudulenta eleição de 2018, que impôs a extrema-direita no governo federal. A maior parte do campo cultural teve posições claras em relação à candidatura presidencial de Lula, à sua prisão escandalosamente política, ao seu afastamento arbitrário da disputa presidencial e sua substituição pelo candidato Fernando Haddad. A campanha “Lula Livre”, por exemplo, obteve apoio e participação de parcela significativa e representativa da comunidade cultural brasileira.    

O mandato Bolsonaro e a intervenção na cultura (janeiro de 2019 em diante)

Os governos do estado de exceção, Temer e Bolsonaro, compartilharam a animosidade contra a cultura, com explícitos episódios de censura e agressões aos produtores culturais, e a intenção de desmantelar as políticas, programas e projetos culturais inaugurados no período 2003-2016. Entretanto, cabe assinalar a distinta envergadura de tais processos. Temer tentou extinguir o Ministério da Cultura e não conseguiu, devido ao movimento desencadeado pelo campo cultural de ocupar as sedes do ministério em todo país (Barbalho, 2017 e Barbalho, 2018). 

Bolsonaro aprofundou o ímpeto de desmantelamento da institucionalidade do setor cultural com a extinção do Ministério da Cultura e sua redução a uma mera secretaria, vinculada aleatoriamente ao Ministério da Cidadania e depois, em novembro de 2019, ao Ministério do Turismo. Além disto, em pouco mais de um ano de gestão, os responsáveis institucionais pela área federal da cultura já totalizaram quatro nomes: Henrique Pires (até agosto de 2019),  Ricardo Braga (agosto /setembro de 2019), Roberto Alvim (setembro de 2019 / janeiro de 2020) e Regina Duarte (março de 2020 em diante).

A gestão Bolsonaro elegeu a cultura como inimiga, em conjunto com a educação, as ciências, as artes, as universidades públicas e os temas relativos às chamadas minorias, em especial às manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBT e dos povos originários. No caso da cultura, o governo se caracteriza pelas agressões às liberdades de criação e de expressão, pela volta da censura; pelo desmonte das instituições culturais; pela demonização da cultura e das artes e pela deliberada intenção de asfixiar financeiramente a cultura.

Os episódios nesse horizonte de atentados se avolumam. Impossível enumerar todas elas. A título de exemplo cabe apenas relembrar algumas intervenções públicas de Roberto Alvim, por sua presença emblemática na cena político-cultural do atual governo. Após insultar verbalmente Fernanda Montenegro, chamando a atriz de “mentirosa” e “sórdida”, ele deixou a direção do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional das Artes (Funarte) para ser promovido por Messias Bolsonaro à Secretário de Cultura. A agressão à atriz teve enorme repercussão negativa no país e no estrangeiro. Cabe lembrar que Fernanda Montenegro é uma das atrizes brasileiras mais conhecidas e respeitadas no país e no exterior; uma espécie de primeira dama das artes.  
  
Já no cargo de Secretário de Cultura, Roberto Alvin fez, na reunião anual da Unesco, um duro ataque às artes brasileiras nos últimos vinte anos, surpreendendo, pelo inusitado da atitude, em ambiente marcado por delicadas regras diplomáticas vigentes, às delegações estrangeiras presentes ao evento e causando grande constrangimento internacional para o Brasil.

Ricardo Alvim em diversas ocasiões afirmou que o país vive um momento crucial de guerra cultural. Ele anunciou que estava formando um exército combatente de artistas espiritualmente comprometidos com o presidente de extrema-direita para redefinir a história cultural nacional. O exército para a guerra cultural no dia 02 de dezembro passou a contar com dois novos membros nomeados por Messias Bolsonaro. O maestro e youtuber Sante Mantovani, indicado para presidente da Funarte, logo mostrou suas credenciais, afirmando que o rock incentiva o sexo, leva ao aborto e ao satanismo e que os Beatles surgiram para implantar o comunismo. Rafael Nogueira, monarquista, professor e youtuber, seguidor do astrólogo/ideólogo-mor do governo Olavo de Carvalho, designado para a Biblioteca Nacional, também assumiu tom belicoso ao associar o cantautor Caetano Veloso, a banda Legião Urbana e o cantor Gabriel Pensador, ao analfabetismo. Outro membro do exército cultural teve sua nomeação retardada. Trata-se de Sérgio Nascimento de Camargo, filho de um ativista do movimento negro e nomeado para a Fundação Cultural Palmares, entidade nacional voltada para as culturas negras. Ele declarou, dentre outras pérolas, que a escravidão foi benéfica para aos africanos e que o Brasil tem um racismo “Nutella”.

A Carta Capital, única revista de efetivo jornalismo entre a grande imprensa brasileira, na edição de 11 de dezembro de 2019, dedicou sua capa e reportagem principal ao tema. Na capa, fotografias de Wagner Moura, Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil e Caetano Veloso têm suas bocas rasgadas e interditadas por uma faixa de fundo em vermelho. Abaixo na imagem, a manchete: “Calem-se. O governo Bolsonaro amplia a ‘guerra cultural’ contra os artistas”. O título da reportagem de Eduardo Nunomoura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches é contundente: “A guerra cultural a todo vapor. O bolsonarismo amplia o cerco aos artistas brasileiros e elege a classe como o inimigo a ser aniquilado”. A reportagem, que ocupa as páginas 14 a 19, traça um panorama das inúmeras atitudes que o governo vem tomando para ferir a área cultural, relatando diversos episódios que demonstram a continuada e deliberada guerra contra os mais diferentes setores e personalidades do campo cultural brasileiro. Alguns destes acontecimentos estão relatados acima neste texto.

A edição brasileira do jornal espanhol El País, outro exemplo de bom jornalismo no país, publicou na sua área de cultura, no dia 27 de dezembro de 2019, artigo de Joana Oliveira, intitulado: “Sob ataque de Bolsonaro, Cultura defende seu impacto na economia com receita de 170 bilhões de reais”. A reportagem demonstra o papel econômico da cultura no Brasil, afirmando que o “Setor emprega cerca de 5 milhões de pessoas, entre formais e informais, ou quase 6% de toda a mão de obra brasileira” e que a “Lei Rouanet dá suporte a 73% das produções culturais do país”. A chamada Lei Rouanet é a legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura. Em suma, apesar dos expressivos números da dimensão econômica da cultura, com evidente impacto no desenvolvimento do Brasil, a cultura está sob bombardeio cerrado e constante do governo.    
      
Em 17 de janeiro de 2020, em discurso sobre o edital do Prêmio Nacional das Artes, ao som de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler, o Secretário de Cultura Roberto Alvim plagiou trechos do discurso de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda nazista. No vídeo, Roberto Alvim afirma: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa (...) ou então não será nada”. O líder nazista havia dito: “A arte alemã da próxima década será heroica, (...), será nacional com grande pathos e igualmente imperativa (...) ou então não será nada”. A repercussão política de tal atitude ideológica explícita foi intensa. Variados segmentos sociais e políticos reagiram, o que ocasionou a demissão do secretário por Messias Bolsonaro.    

Para além do episódio encenado parafraseando o nazismo, a queda de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura parece sugerir também que sua ambiciosa movimentação, buscando ocupar papel de protagonista principal na guerra cultural contra as esquerdas, não agradou aos setores ideológicos do regime, submetido ao guru Olavo de Carvalho e dispersos em vários órgãos relevantes do governo, a exemplo do Ministério da Educação e Ministério das Relações Exteriores, bem como associados aos setores evangélicos fundamentalistas, que procuram impor uma agenda dos valores conservadores. Olavo de Carvalho, que indicou Roberto Alvim para o cargo, por exemplo, escreveu no Facebook: “É cedo para julgar, mas o Roberto Alvim talvez não esteja muito bem da cabeça. Veremos”. Além de sua falta de articulação e base política no interior do governo, a atitude de Roberto Alvim de tornar tão escancarado os valores fascistas que comandam o regime parece não ter agradado o governo e seus mentores ideológicos, que possivelmente preferem não ser tão explícitos.

Para seu lugar foi convidada a atriz, ligada às telenovelas e aos seriados da Rede Globo, Regina Duarte. Em 1979, ela ganhou fama protagonizando a série Malu Mulher, que discutia e afirmava um novo lugar da mulher na sociedade. Sua trajetória posterior se tornou cada vez mais de direita, com posições sempre contrárias aos setores de esquerda e, em especial, ao Partido dos Trabalhadores. Na eleição de 2018, declarou seu voto em Messias Bolsonaro, caso relativamente raro entre artistas e membros do campo cultural.

Sua posse aconteceu no dia 04 de março de 2020. A cerimônia foi marcada pela fraca presença dos setores culturais e artísticos. Seu discurso tratou, entre trejeitos e gracejos, a cultura como algo engraçado, como uma espécie de “peido de palhaço”, metáfora acionada explicitamente por ela. Conforme a Revista Fórum, ela literalmente disse: “Cultura é aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço. A cultura é assim, é feita de palhaçada”. No discurso de apenas 15 minutos, além deste trecho que ganhou muito visibilidade pelo grotesco, a nova Secretaria de Cultura lembrou que teria carta branca do presidente para escolher sua equipe.

No dia anterior, quando não havia ainda tomado posse, Regina Duarte demitiu sete membros de órgãos ligados à Secretaria, dentre eles os presidentes da Funarte e do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), todos eles indicados pelo ideólogo mor de Messias Bolsonaro e família, Olavo de Carvalho. Tal atitude foi encarada pela ala olavista do governo como uma declaração de guerra. Logo autoridades e sites reagiram tecendo ferozes críticas à nova Secretária, inclusive o próprio Olavo de Carvalho que enviou pelas redes sociais palavras de baixo calão contra Regina Duarte.

Pouco depois, o blog de Lauro Jardim hospedado em O Globo destacava que oito nomes indicados por ela para ocupar cargos na Secretaria de Cultura haviam sido vetados pelo Palácio do Planalto, sede da gestão federal. Um exemplo foi sua tentativa malsucedida de nomear Maria do Carmo Brant de Carvalho para a Secretaria da Diversidade. Outro exemplo, ainda mais grave: ela não conseguiu se livrar de Sérgio Camargo na Fundação Cultural Palmares, e teve que ler uma resposta dele ao link no qual Regina Duarte acusa Sérgio Camargo de “ativista”. Ele, em seu Twitter, mandou um recado à chefa: “Não levo esquerdistas para o governo Bolsonaro. Ao contrário, estou tirando”.  
     
Em resumo, a nova Secretária terá de se locomover, com habilidade que parece não ter, tanto em relação à postura majoritariamente crítica da comunidade cultural ao governo Messias Bolsonaro e sua agressiva atuação contra a cultura, quanto no próprio interior do governo, atacada por suas fracções mais fundamentalistas e ideológicas de extrema-direita. Suas possibilidades de atuação se mostram bastante limitadas por sua falta de consistência, formulação e experiência, bem como pelo comportamento do governo que insiste em agredir a cultura e pelas arestas e disputas no interior da própria gestão federal. Em sua secção de notícias da semana, na página 12, a revista Carta Capital, de 18 de março de 2020, escreveu: “A participação especial de Regina Duarte nessa soap opera pode ser mais curta do que imaginava, apostam os políticos da capital federal” 
                            
No atual cenário da gestão Messias Bolsonaro, parece que a Secretaria de Cultura está destinada a ocupar um lugar secundário, dado que a guerra cultural, tão cara aos atos do governo, já tem seus protagonistas devidamente definidos. A Secretaria de Cultura, agora com Regina Duarte à frente, deve continuar marginal, podendo assumir inclusive um papel de claramente ornamental no seio da gestão, quando não pitoresco e exótico.          

Guerra cultural

A atuação anticultural, comum a todos os regimes autoritários, como o estado de exceção que oprime hoje o Brasil, não se limita à postura destrutiva antes apontada. Paralelo ao desmantelamento e perseguição à cultura, semelhante ao que ocorreu entre 2016-2018 na gestão Temer, com o aumento da agressividade na atualidade, emergem novos fatores fundamentais para distinguir entre a situação anterior (Temer) e a atual (Bolsonaro), bem como para demarcar com maior nitidez a singularidade do momento político-cultural que hoje vive o país.

De imediato, cabe destacar a radicalização do viés destrutivo buscado pelo novo governo. Entretanto, esta política não é só destruição. A radicalidade do desmonte encobre outro aspecto central da atuação da atual gestão. Em lugar da mera perseguição à cultura, emerge uma orientação precisa de guerra, ou melhor de cruzada ideológica contra o “marxismo cultural” e tudo que cabe nesta noção elástica. Iná Camargo Costa, em seu livro intitulado Dialética do marxismo cultural, assinala que o uso da expressão provém do início da década de 1990, tendo como primeiros usuários cristãos fundamentalistas, ultraconservadores e de extrema-direita dos Estados Unidos (Costa, 2020, p.37/38).   
 
A atuação, inspirada em tais concepções ideológicas, não busca o mero desenvolvimento da cultura, das artes, do patrimônio e de outras modalidades culturais, mesmo em viés autoritário e conversador, mas uma feroz cruzada contra todas as modalidades culturais, em geral consideradas como contaminadas pelo “marxismo cultural”. Tal cruzada está organizada a partir do núcleo ideológico duro de extrema-direita do governo, instalado em diversos setores do aparelho estatal nacional, com destaque para as relações internacionais e a educação, com a estrita colaboração de órgãos estatais controlados pelo fundamentalismo religioso. Trata-se, portanto, não só de destruição, mas da colocação em seu lugar de outra cultura, visceralmente autoritária e conservadora, terraplanista, com traços de intransigente fundamentalismo religioso e moral. Tal novidade do atual cenário político-cultural nacional não pode, nem deve ser menosprezada. Ela indica o perigoso patamar da guerra cultural desfechada pela gestão Messias Bolsonaro.

A cruzada não tem como polo principal ou está centralizada na Secretaria de Cultura. O processo efetivo de descentramento da localização institucional da guerra cultural aponta para a singularidade adquirida pela cruzada político-cultural-ideológica em andamento. Diferente da situação anterior, na qual a direita no poder na gestão Temer se concentrou em destruir o legado político-cultural das gestões anteriores no governo federal (2003-2016), agora a extrema-direita, que tomou o poder, não apenas continua de modo mais brutal a destruição das liberdades, das políticas culturais e mesmo do campo da cultura, como pretende colocar em lugar da cultura cidadã, crítica e laica uma cultura autoritária, conservadora e fundamentalista, em termos políticos, morais e religiosos.

O descentramento institucional do lócus formulador da luta político-cultural-ideológica, agora em curso, desvela outra peculiaridade da situação política vivenciada hoje pelo país. A rigor, a empreitada está organizada sob as ordens da fracção ideológica do governo, comandada por seu astrólogo mor, e assumida plenamente pelo presidente, pela família Bolsonaro e por dirigentes governamentais. Ou seja, a guerra político-cultural-ideológica não está reduzida a uma área específica do governo, como a Secretaria de Cultura, mas perpassa estrategicamente o próprio governo, disseminada por vários de seus organismos e aceita plenamente por seu núcleo central, instalado no Palácio do Planalto. Assim, se a cultura não está inscrita como estratégica do modelo de desenvolvimento do país, a rigor até hoje inexistente, ela foi plenamente inserida como estratégica na luta de classes em curso no Brasil, na qual se defrontam modelos distintos de país.

Nesse contexto, por adesão ou omissão, o estímulo às culturas contrárias às liberdades individuais e coletivas; à democracia; à cidadania e às diversidades social e cultural, em especial aquelas relacionadas às culturas identitárias, associadas aos negros, povos originários, mulheres e comunidades LGBT, não apenas é implementada de maneira estratégica pelo governo, mas é reforçada pelos setores dominantes e sua grande mídia. Em suma, esta convergência política visa conjugar a destruição de culturas democráticas, emancipatórias, laicas e republicanas, e a criação em seu lugar de culturas autoritárias, fundamentalistas, elitistas e moralistas do novo velho Brasil.  

O papel destinado às “políticas culturais”, afins à gestão Messias Bolsonaro, precisa ser discutido neste cenário. Qualquer intenção de algo mesmo próximo às políticas culturais só parece adquirir sentido neste contexto. Nele, a cultura está instrumentalizada e operada dentro de objetivos bastante delimitados, sem quase nenhum resquício de autonomia, mesmo relativa. O acionamento eminentemente instrumental da cultura dificulta e mesmo inibe a conformação de uma política que busque desenvolver a cultura, inclusive aquela sintonizada com os valores da extrema-direita. Nesta circunstância, o governo não conseguiu articular até o momento uma efetiva política cultural no sentido rigoroso do termo. A construção de política cultural requer um conjunto de requisitos muitos deles não alcançados e diversos outros até contraditados pela atuação político-cultural da gestão Bolsonaro.

O conceito de política cultural indicado abaixo, elaborado em diálogo com a famosa noção de Nestór García Canclini (1987 e 2001), pode ser um bom balizador da distância que precisa ser percorrida entre a situação atual e condições necessárias para se falar em política cultural, orientada pelas formulações autoritárias, conservadoras e fundamentalistas da atual gestão federal. No contexto deste texto, política cultural é entendida como: um conjunto articulado, consciente, continuado, deliberado, sistemático e planejado de intervenções, formulações e/ou atuações, de diversos entes culturais (estado, sociedade, comunidades  e instituições culturais etc.) com o objetivo de: atender demandas e necessidades culturais da população; estimular o desenvolvimento simbólico; construir hegemonias para conservar ou transformar a sociedade e a cultura; e garantir cidadania e direitos culturais. Ela aciona recursos institucionais, infraestruturais, normativos, financeiros e de pessoal. Ela destina especial atenção às dimensões organizativas da dinâmica cultural. Para que exista, a política cultural exige superar a instrumentalização da cultura pela política e inaugurar uma nova relação, na qual a política é instrumento e a cultura finalidade (Rubim, 2019a). Por contraposição a tudo isto, a cultura na gestão Messias Bolsonaro, mais uma vez, está sendo instrumentalizada como finalidades expressamente político-ideológicas e como isto muitos dos requisitos inscritos na definição acima não estão sendo contemplados.   

Guerra cultural, violência e os desafios da luta democrática

Mas é preciso estar atento a um aspecto crucial dessa nova circunstância político-cultural. A colocação da cultura na centralidade da disputa político-ideológica na sociedade, paradoxalmente nunca  formulada e realizada pelos governos de Lula ou de Dilma no seu projeto de transformação democrática do Brasil, não significa de modo algum a aceitação da disputa pela hegemonia intelectual e moral em ambiência democrática, como imaginou Antonio Gramsci, quando fez a distinção entre dominação via coerção e outra, de tipo diferente, efetivada por meio do acionamento da coesão. O apelo à centralidade político-ideológica atribuída à cultura pela gestão Messias Bolsonaro não implica a aceitação de uma arena legitima de disputa política democrática de valores e de concepções político-culturais diferenciadas que, por conseguinte, deve ser em princípio respeitada como tal por todos os cidadãos e agentes políticos.

A postura da gestão Messias Bolsonaro configura algo bastante perigoso, o acionamento prévio da luta político-cultural, não para desenvolver a democrática e a legitima disputa pelo poder político, como se poderia supor ingenuamente. Antes significa a utilização antecipada e instrumental de tais dispositivos culturais-ideológicos para viabilizar, em sequência, atos de violência não só simbólica, mas também física, contra instituições, coletivos e pessoas, que não se submetem à sua pregação autoritária e fundamentalista. Enfim, não se trata de um projeto de disputa de hegemonia cultural (intelectual e moral, como diria Antonio Gramsci), posto que a competição não se limita ao confronto para esclarecer, sensibilizar e subsidiar  tomadas de decisões políticas de modo pacífico sobre o tema com base em procedimentos legais e legitimados pela sociedade brasileira. Em verdade, o acionamento da visão estratégica da cultura busca tão somente viabilizar violência simbólica e física contra todos os adversários político-culturais, tomados como inimigos a destruir.

Deste modo, a utilização da expressão guerra cultural em lugar de disputa pela hegemonia político-cultural ganha todo sentido, inclusive porque não se vive hoje um ambiente democrático no Brasil, mas um estado de exceção com todo autoritarismo, violação às leis e violência que ele promove. Fundamental a distinção entre estas duas concepções, posto que uma ocorre e torna possível o aprofundamento da democracia com a busca de transição de uma democracia meramente formal para uma democracia substantiva, na qual os requisitos formais imprescindíveis à democracia estejam contemplados, mas sejam também assegurados direitos (econômicos, sociais, políticos, ambientais e culturais) à maioria da população. A outra opção, assumida pelo atual governo, pode levar a um regime não só autoritário, mas totalitário, sem mais.  

A existência do estado de exceção coloca a questão democrática como vital para a superação do retrocesso imposto ao país, inclusive na esfera cultural. Não se trata apenas de lutar por uma democracia formal de verniz liberal-eleitoral, mas de aprofundar a luta por uma democracia substantiva, que garanta todas as regras formais necessárias ao ambiente de liberdades democráticas, e mais que isto assegure cidadania e direitos para todos, inclusive a cidadania cultural e os direitos culturais. No contexto (hiper)politizado do Brasil atual mais que nunca o destino da cultura e das políticas culturais é perpassado pela questão da democracia, de sua afirmação ou negação plena, com a instalação de um estado declaradamente ditatorial.

A luta pela democracia requer assumir a cultura como momento fundamental desta luta. Primeiro porque a disputa democrática exige a configuração de uma cultura política democrática, que se contraponha vigorosamente à cultura autoritária e fundamentalista, que o governo e as classes dominantes tentam impor ao Brasil. Sem a hegemonia dos valores democráticos não existe a possibilidade de uma efetiva democracia no país. Tal processo de disputa é vital para a construção de um Brasil radicalmente democrático. Segundo porque majoritariamente o campo cultural tem sido agente ativo do processo de luta democrática no país desde 2016, atuando contra o golpe de 2016; contestando a gestão Temer entre 2016-2018; apoiando em 2018 à candidatura presidencial de Lula e, após sua interdição arbitrária, a candidatura de Fernando Haddad; fazendo oposição ao candidato (2019) e depois à gestão Messias Bolsonaro (2019 em diante) e participando de modo criativo da campanha Lula livre, pela liberdade de Luiz Inácio Lula da Silva, preso político entre 2018-2019.
Aliás a atual cena político-cultural brasileira está marcada por significativa politização do campo cultural ocasionada, dentre outras fatores, pela singular presença das políticas culturais nos anos 2003-2016, como observou Alexandre Barbalho nos textos já referidos. A politização dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo nos recentes carnavais pode ser tomada como emblemática. Pedro Alexandre Sanches, no artigo “Das cinzas às cinzas”, publicado na Carta Capital de 04 de março de 2020, discute a atitude rebelde das escolas de samba, mas aponta também os limites espaço-temporais de tais protestos. Ele lembra das atitudes fortemente críticas de escolas como: Paraíso da Tuiuti; Mangueira; São Clemente; Águia de Ouro e Gaviões da Fiel.                             
A politização, combinada e desigual, de determinados segmentos culturais merece ser estudada, pois ela não parece ter grau similar a depender do setor cultural analisado: artistas independentes, culturas digitais, culturas eruditas; culturas identitárias, culturas populares, culturas universitárias, indústria cultural, dentre outros. Tais áreas da cultura têm inserções políticas, sociais e econômicas bem distintas, ocasionando possibilidades desiguais de politização e atuação no atual cenário de disputas no Brasil. Por exemplo: os segmentos oriundos das comunidades universitárias, em especial públicas, vinculados à educação, as ciências, as artes e a cultura, têm posições abertamente críticas do governo federal. Parece acontecer algo semelhante com os agentes culturais conectados com as culturas identitárias, atacadas no dia-a-dia por membros e apoiadores da gestão federal. Na área das culturas populares, os ativistas que tiveram mais vínculos com os programas culturais, a exemplo do Cultura Viva, têm postura mais definida contra o governo, enquanto outros permanecem omissos e distantes das disputas políticas. Nas chamadas culturas eruditas a omissão parece ser ainda maior, quando não algum apoio ao governo. No âmbito da indústria cultural, com todos patrões aliados e acintosamente submetidos às ordens do governo, muitas celebridades se opõem expressamente à Messias Bolsonaro e uma fracção minoritária o apoia, a exemplo de artistas ligados à música sertaneja, um tipo de música mercantilizada associada ao mundo rural, em especial aquele ligado ao agronegócio. Nos artistas independentes a atitude crítica ao governo também parece predominante, bem como entre os jovens próximos às culturas digitais, ainda que existam também entre eles apoiadores do governo e militantes da extrema-direita. O estudo dos comportamentos e dos pensamentos dos agentes e das comunidades culturais torna-se fundamental para uma melhor compreensão do cenário político-cultural brasileiro contemporâneo.    
                      
Tais desafios especificamente no campo cultural implicam na luta pela preservação crítica das experiências de políticas democráticas de cultura acontecidas entre 2003 e 2016, que as gestões Temer e Bolsonaro tentam sistematicamente apagar, destruir e silenciar. Como apontou Walter Benjamin, o passado corre perigo, pois está em contínua disputa no presente. Nas suas famosas teses sobre a filosofia da história, Walter Benjamin escreveu poético: “Articular históricamente el pasado no significa conocerlo ‘como verdaderamente ha sido’. Significa adueñarse de un recuerdo tal cual éste relampaguea en un instante de peligro” (Benjamin, 1967, p.45).
O risco se torna ainda maior pela situação autoritária vivida após o golpe de 2016 e a ascensão da extrema direita ao poder federal. A disputa político-cultural da memória se apresenta como um dos desafios mais vitais a ser enfrentado. O estudo e a reflexão crítica acerca das políticas culturais desenvolvidas naquilo que elas tenham de equivocadas e/ou insatisfatórias aparecem como outro desafio, a ser realizado mesmo nos atuais tempos sombrios.

Por fim, torna-se vital o aprofundamento e o avanço de experimentos radicalmente democráticos e inovadores em políticas culturais onde for possível, dado que o Brasil é um país de organização constitucional federativa, com governos estaduais e municipais, com certa autonomia, dirigidos inclusive por setores democráticos e de esquerda. O exemplo do Consórcio Nordeste, que está sendo construído pelos governadores dos nove estados do Nordeste, todos eles de oposição à Messias Bolsonaro, é emblemático neste sentido. O Consórcio deve ser acionado pela área da cultura.            
O amplo processo de luta pela democratização substantiva do Brasil necessita aglutinar muitos agentes e comunidades em lugares e papéis diferenciados e complementares de atuação. Os agentes e comunidades culturais devem ser base essencial desta mobilização, colocando cultura, bem como educação, ciência e comunicação, com centralidade na luta democrática. O campo cultural precisa associar suas demandas de políticas culturais às reivindicações democráticas de cidadania e de direitos da sociedade fortalecendo seu processo de politização e de compreensão que a vida da cultura depende da conquista da democracia e da sociedade mais justa, livre e criativa no Brasil.
Necessário sensibilizar entidades da sociedade civil, movimentos sociais e sociedade política, com suas lideranças e partidos especialmente os democráticos e de esquerda, para que percebam a importância da cultura e para que lutem conjuntamente por ela e pelas suas áreas afins. Os estudiosos e as instituições universitárias, científicas e culturais também têm atuação destacada neste processo de luta, seja pela manutenção da memória crítica das experiências político-culturais expressivas acontecidos no Brasil e no mundo, seja pela capacidade de analisar o presente e imaginar novas modalidades de atuação político-cultural, em diálogo constante com a sociedade, os agentes e as comunidades culturais. Os governos democráticos, progressistas e de esquerda devem colocar as políticas culturais entre suas prioridades políticas, garantindo clima de liberdade de criação e expressão, promoção e preservação da diversidade cultural, respeito à diferença e viabilizando, inclusive financeiramente, o desenvolvimento de experimentos criativos e inovadores, que se contraponham às culturas autoritárias e fundamentalistas. A atitude e a atuação colaborativa de todos estes agentes político-culturais, em conjunto com todas as forças democráticas e de esquerda da sociedade brasileira, são hoje vitais para resistir ao autoritarismo, reconquistar a democracia e construir o Brasil inclusivo, soberano, diverso, plural e criativo.                          

Referências

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COSTA, Iná Camargo. Dialética do marxismo cultural. São Paulo, Expressão Popular, 2020.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no primeiro governo Dilma: patamar rebaixado. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre e CALABRE, Lia (orgs.) Políticas culturais no governo Dilma. Salvador, Editora da UFBA, 2015, p.11-31.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Por um conceito atualizado de política cultural (texto inédito, 2019a) 
RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim. Políticas culturais pós-golpe de 2016 (texto inédito, 2019b)
RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim. Desafios das políticas culturais no Brasil atual (texto inédito, 2020)

Jornais e revistas
Carta Capital.
São Paulo, (1084):14-19, 11 de dezembro de 2019.
São Paulo, (1095):44-45, 04 de março de 2020.
São Paulo, (1097):12, 18 de março de 2020.
El País
https://brasil.elpais.com/cultura/2019-12-27/sob-ataque-de-bolsonaro-cultura-defende-seu-impacto-na-economia-com-receita-de-170-bilhoes-de-reais.html
Revista Fórum
Revistaforum.com.br (04.03.2020)
Globo
blogs.oglobo.globo.com


* Pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). Professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ex-Secretário de Cultura do Estado da Bahia. Ex-Presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia.

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