Atuação
político-cultural da gestão Messias Bolsonaro
Antonio
Albino Canelas Rubim *
Resumo
O
texto analisa a atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro (janeiro
de 2019 - março de 2020). Ela se caracteriza por ataques à democracia, à cultura,
aos agentes do campo cultural, às políticas culturais vigentes entre 2003-2016
e pela tentativa de impor uma cultura autoritária, conservadora e
fundamentalista, com valores contrapostos à preservação e à promoção da
diversidade cultural, ao respeito à diversidade social e aos diálogos
interculturais. A guerra cultural estimulada pela gestão, longe de buscar uma
legitima disputa pela hegemonia político-cultural, visa estigmatizar
adversários, transformados em inimigos a aniquilar, simbólica e fisicamente, no
contexto do estado de exceção vigente no país desde o golpe
midiático-jurídico-parlamentar de 2016. No entanto, tal dinâmica, combinada e
desigual, não conseguiu até agora conformar uma efetiva política cultural,
contraposta aquelas construídas no Brasil dos anos democráticos.
Palavras-chave
Atuação
político-cultural, gestão Bolsonaro, Brasil atual, estado de exceção,
políticas culturais.
Introdução
O
golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de
2018 instalaram no Brasil um estado de exceção com repercussões em toda a sociedade
e com retrocessos nas políticas públicas. O texto trata do impacto da nova conjuntura
no campo cultural, por meio de observações iniciais sobre a atuação da gestão
Messias Bolsonaro. A análise do processo em andamento implica no recurso tanto
a experiência vivida, quanto à utilização de informações de jornais, revistas e
sites, além de acionar a pequena bibliografia já existente sobre os
acontecimentos em estudo.
O
Brasil viveu entre 2003 e 2016 um momento singular. Neste período histórico as
classes dominantes não dominavam o governo nacional, como aconteceu durante
séculos, mas continuavam no poder no Brasil. Com limitações – devido às
circunstâncias, alianças e conciliações – o governo desenvolveu políticas de
distribuição para combater a enorme desigualdade social existente e políticas
de reconhecimento, buscando tornar visíveis e dotar de legitimidade os setores
oprimidos, sempre excluídos na vida nacional.
Entre
2003 e 2016, com acertos e erros, ocorreram políticas voltadas às diversidades
social e cultural brasileiras, ainda que elas assumissem tons desiguais nos
governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2010-2016). Dois
momentos diferenciados foram então vivenciados pelos brasileiros: o período do
presidente Lula e dos ministros da cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, com
atuação político-cultural potente e o governo da presidenta Dilma e suas
ministras da cultura, Ana de Holanda e Marta Suplicy, com patamar de
intervenção político-cultural rebaixado (Rubim, 2015; Calabre, 2015).
Apesar
das ambiguidades e contradições, a inovação de políticas culturais, a
criatividade de programas e projetos e a amplitude da participação de agentes
culturais colocaram o Ministério da Cultura em um horizonte político nunca alcançado
na história da nação, com destaque para o governo Lula e a gestão ministerial
de Gilberto Gil. O Brasil, entre 2003-2008, viveu o período mais brilhante das
políticas culturais no país, seja por meio do desenvolvimento de múltiplas
experiências criativas, seja pela ampliação dos estudos sobre políticas
culturais.
Ainda
que em ritmos desiguais, marcados por avanços e retrocessos, ambiguidades e
posicionamentos, o Brasil recente (2003-2016) colocou na agenda o tema da
cultura e das políticas culturais. A riqueza dessa atuação teve repercussão posteriormente
na atitude majoritária do campo cultural contrária ao golpe (2016), à gestão
Temer (2016-2018) e aos desdobramentos políticos, decorrentes da fraudulenta
eleição de 2018, que impôs a extrema-direita no governo federal. A maior parte
do campo cultural teve posições claras em relação à candidatura presidencial de
Lula, à sua prisão escandalosamente política, ao seu afastamento arbitrário da
disputa presidencial e sua substituição pelo candidato Fernando Haddad. A
campanha “Lula Livre”, por exemplo, obteve apoio e participação de parcela
significativa e representativa da comunidade cultural brasileira.
O mandato Bolsonaro e a
intervenção na cultura (janeiro de 2019 em diante)
Os
governos do estado de exceção, Temer e Bolsonaro, compartilharam a animosidade
contra a cultura, com explícitos episódios de censura e agressões aos
produtores culturais, e a intenção de desmantelar as políticas, programas e
projetos culturais inaugurados no período 2003-2016. Entretanto, cabe assinalar
a distinta envergadura de tais processos. Temer tentou extinguir o Ministério
da Cultura e não conseguiu, devido ao movimento desencadeado pelo campo cultural
de ocupar as sedes do ministério em todo país (Barbalho, 2017 e Barbalho,
2018).
Bolsonaro aprofundou o ímpeto de desmantelamento
da institucionalidade do setor cultural com a extinção do Ministério da Cultura
e sua redução a uma mera secretaria, vinculada aleatoriamente ao Ministério da
Cidadania e depois, em novembro de 2019, ao Ministério do Turismo. Além disto,
em pouco mais de um ano de gestão, os responsáveis institucionais pela área federal
da cultura já totalizaram quatro nomes: Henrique Pires (até agosto de 2019), Ricardo Braga (agosto /setembro de 2019),
Roberto Alvim (setembro de 2019 / janeiro de 2020) e Regina Duarte (março de
2020 em diante).
A
gestão Bolsonaro elegeu a cultura como inimiga, em conjunto com a educação, as
ciências, as artes, as universidades públicas e os temas relativos às chamadas
minorias, em especial às manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBT e dos
povos originários. No caso da cultura, o governo se caracteriza pelas agressões
às liberdades de criação e de expressão, pela volta da censura; pelo desmonte
das instituições culturais; pela demonização da cultura e das artes e pela
deliberada intenção de asfixiar financeiramente a cultura.
Os
episódios nesse horizonte de atentados se avolumam. Impossível enumerar todas
elas. A título de exemplo cabe apenas relembrar algumas intervenções públicas
de Roberto Alvim, por sua presença emblemática na cena político-cultural do
atual governo. Após insultar verbalmente Fernanda Montenegro, chamando a atriz
de “mentirosa” e “sórdida”, ele deixou a direção do Centro de Artes Cênicas da
Fundação Nacional das Artes (Funarte) para ser promovido por Messias Bolsonaro à
Secretário de Cultura. A agressão à atriz teve enorme repercussão negativa no
país e no estrangeiro. Cabe lembrar que Fernanda Montenegro é uma das atrizes brasileiras
mais conhecidas e respeitadas no país e no exterior; uma espécie de primeira
dama das artes.
Já
no cargo de Secretário de Cultura, Roberto Alvin fez, na reunião anual da
Unesco, um duro ataque às artes brasileiras nos últimos vinte anos, surpreendendo,
pelo inusitado da atitude, em ambiente marcado por delicadas regras
diplomáticas vigentes, às delegações estrangeiras presentes ao evento e
causando grande constrangimento internacional para o Brasil.
Ricardo
Alvim em diversas ocasiões afirmou que o país vive um momento crucial de guerra
cultural. Ele anunciou que estava formando um exército combatente de artistas
espiritualmente comprometidos com o presidente de extrema-direita para
redefinir a história cultural nacional. O exército para a guerra cultural no
dia 02 de dezembro passou a contar com dois novos membros nomeados por Messias
Bolsonaro. O maestro e youtuber Sante Mantovani, indicado para presidente da
Funarte, logo mostrou suas credenciais, afirmando que o rock incentiva o sexo,
leva ao aborto e ao satanismo e que os Beatles surgiram para implantar o
comunismo. Rafael Nogueira, monarquista, professor e youtuber, seguidor do
astrólogo/ideólogo-mor do governo Olavo de Carvalho, designado para a
Biblioteca Nacional, também assumiu tom belicoso ao associar o cantautor Caetano
Veloso, a banda Legião Urbana e o cantor Gabriel Pensador, ao analfabetismo.
Outro membro do exército cultural teve sua nomeação retardada. Trata-se de
Sérgio Nascimento de Camargo, filho de um ativista do movimento negro e nomeado
para a Fundação Cultural Palmares, entidade nacional voltada para as culturas
negras. Ele declarou, dentre outras pérolas, que a escravidão foi benéfica para
aos africanos e que o Brasil tem um racismo “Nutella”.
A
Carta Capital, única revista de efetivo jornalismo entre a grande
imprensa brasileira, na edição de 11 de dezembro de 2019, dedicou sua capa e
reportagem principal ao tema. Na capa, fotografias de Wagner Moura, Chico
Buarque, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil e Caetano Veloso têm suas bocas rasgadas
e interditadas por uma faixa de fundo em vermelho. Abaixo na imagem, a manchete:
“Calem-se. O governo Bolsonaro amplia a ‘guerra cultural’ contra os artistas”. O
título da reportagem de Eduardo Nunomoura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre
Sanches é contundente: “A guerra cultural a todo vapor. O bolsonarismo amplia o
cerco aos artistas brasileiros e elege a classe como o inimigo a ser aniquilado”.
A reportagem, que ocupa as páginas 14 a 19, traça um panorama das inúmeras
atitudes que o governo vem tomando para ferir a área cultural, relatando
diversos episódios que demonstram a continuada e deliberada guerra contra os
mais diferentes setores e personalidades do campo cultural brasileiro. Alguns
destes acontecimentos estão relatados acima neste texto.
A
edição brasileira do jornal espanhol El País, outro exemplo de bom jornalismo
no país, publicou na sua área de cultura, no dia 27 de dezembro de 2019, artigo
de Joana Oliveira, intitulado: “Sob ataque de Bolsonaro, Cultura defende seu
impacto na economia com receita de 170 bilhões de reais”. A reportagem
demonstra o papel econômico da cultura no Brasil, afirmando que o “Setor
emprega cerca de 5 milhões de pessoas, entre formais e informais, ou quase 6%
de toda a mão de obra brasileira” e que a “Lei Rouanet dá suporte a 73% das
produções culturais do país”. A chamada Lei Rouanet é a legislação brasileira
de incentivos fiscais à cultura. Em suma, apesar dos expressivos números da
dimensão econômica da cultura, com evidente impacto no desenvolvimento do
Brasil, a cultura está sob bombardeio cerrado e constante do governo.
Em
17 de janeiro de 2020, em discurso sobre o edital do Prêmio Nacional das Artes,
ao som de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler, o Secretário de
Cultura Roberto Alvim plagiou trechos do discurso de Joseph Goebbels, Ministro
da Propaganda nazista. No vídeo, Roberto Alvim afirma: “A arte brasileira da
próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade
de envolvimento emocional e será igualmente imperativa (...) ou então não será
nada”. O líder nazista havia dito: “A arte alemã da próxima década será
heroica, (...), será nacional com grande pathos e igualmente imperativa (...)
ou então não será nada”. A repercussão política de tal atitude ideológica
explícita foi intensa. Variados segmentos sociais e políticos reagiram, o que
ocasionou a demissão do secretário por Messias Bolsonaro.
Para
além do episódio encenado parafraseando o nazismo, a queda de Roberto Alvim da
Secretaria de Cultura parece sugerir também que sua ambiciosa movimentação,
buscando ocupar papel de protagonista principal na guerra cultural contra as
esquerdas, não agradou aos setores ideológicos do regime, submetido ao guru
Olavo de Carvalho e dispersos em vários órgãos relevantes do governo, a exemplo
do Ministério da Educação e Ministério das Relações Exteriores, bem como
associados aos setores evangélicos fundamentalistas, que procuram impor uma
agenda dos valores conservadores. Olavo de Carvalho, que indicou Roberto Alvim
para o cargo, por exemplo, escreveu no Facebook: “É cedo para julgar, mas o
Roberto Alvim talvez não esteja muito bem da cabeça. Veremos”. Além de sua
falta de articulação e base política no interior do governo, a atitude de
Roberto Alvim de tornar tão escancarado os valores fascistas que comandam o regime
parece não ter agradado o governo e seus mentores ideológicos, que
possivelmente preferem não ser tão explícitos.
Para
seu lugar foi convidada a atriz, ligada às telenovelas e aos seriados da Rede
Globo, Regina Duarte. Em 1979, ela ganhou fama protagonizando a série Malu
Mulher, que discutia e afirmava um novo lugar da mulher na sociedade. Sua
trajetória posterior se tornou cada vez mais de direita, com posições sempre
contrárias aos setores de esquerda e, em especial, ao Partido dos
Trabalhadores. Na eleição de 2018, declarou seu voto em Messias Bolsonaro, caso
relativamente raro entre artistas e membros do campo cultural.
Sua
posse aconteceu no dia 04 de março de 2020. A cerimônia foi marcada pela fraca
presença dos setores culturais e artísticos. Seu discurso tratou, entre trejeitos
e gracejos, a cultura como algo engraçado, como uma espécie de “peido de
palhaço”, metáfora acionada explicitamente por ela. Conforme a Revista Fórum,
ela literalmente disse: “Cultura é aquele pum produzido com talco espirrando do
traseiro do palhaço. A cultura é assim, é feita de palhaçada”. No discurso de apenas
15 minutos, além deste trecho que ganhou muito visibilidade pelo grotesco, a
nova Secretaria de Cultura lembrou que teria carta branca do presidente para
escolher sua equipe.
No
dia anterior, quando não havia ainda tomado posse, Regina Duarte demitiu sete
membros de órgãos ligados à Secretaria, dentre eles os presidentes da Funarte e
do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), todos eles indicados pelo ideólogo
mor de Messias Bolsonaro e família, Olavo de Carvalho. Tal atitude foi encarada
pela ala olavista do governo como uma declaração de guerra. Logo autoridades e
sites reagiram tecendo ferozes críticas à nova Secretária, inclusive o próprio
Olavo de Carvalho que enviou pelas redes sociais palavras de baixo calão contra
Regina Duarte.
Pouco
depois, o blog de Lauro Jardim hospedado em O Globo destacava que oito
nomes indicados por ela para ocupar cargos na Secretaria de Cultura haviam sido
vetados pelo Palácio do Planalto, sede da gestão federal. Um exemplo foi sua
tentativa malsucedida de nomear Maria do Carmo Brant de Carvalho para a
Secretaria da Diversidade. Outro exemplo, ainda mais grave: ela não conseguiu
se livrar de Sérgio Camargo na Fundação Cultural Palmares, e teve que ler uma
resposta dele ao link no qual Regina Duarte acusa Sérgio Camargo de “ativista”.
Ele, em seu Twitter, mandou um recado à chefa: “Não levo esquerdistas para o
governo Bolsonaro. Ao contrário, estou tirando”.
Em
resumo, a nova Secretária terá de se locomover, com habilidade que parece não
ter, tanto em relação à postura majoritariamente crítica da comunidade cultural
ao governo Messias Bolsonaro e sua agressiva atuação contra a cultura, quanto
no próprio interior do governo, atacada por suas fracções mais fundamentalistas
e ideológicas de extrema-direita. Suas possibilidades de atuação se mostram
bastante limitadas por sua falta de consistência, formulação e experiência, bem
como pelo comportamento do governo que insiste em agredir a cultura e pelas
arestas e disputas no interior da própria gestão federal. Em sua secção de
notícias da semana, na página 12, a revista Carta Capital, de 18 de
março de 2020, escreveu: “A participação especial de Regina Duarte nessa soap
opera pode ser mais curta do que imaginava, apostam os políticos da capital
federal”
No
atual cenário da gestão Messias Bolsonaro, parece que a Secretaria de Cultura
está destinada a ocupar um lugar secundário, dado que a guerra cultural, tão
cara aos atos do governo, já tem seus protagonistas devidamente definidos. A
Secretaria de Cultura, agora com Regina Duarte à frente, deve continuar marginal,
podendo assumir inclusive um papel de claramente ornamental no seio da gestão,
quando não pitoresco e exótico.
Guerra
cultural
A
atuação anticultural, comum a todos os regimes autoritários, como o estado de
exceção que oprime hoje o Brasil, não se limita à postura destrutiva antes apontada.
Paralelo ao desmantelamento e perseguição à cultura, semelhante ao que ocorreu
entre 2016-2018 na gestão Temer, com o aumento da agressividade na atualidade,
emergem novos fatores fundamentais para distinguir entre a situação anterior
(Temer) e a atual (Bolsonaro), bem como para demarcar com maior nitidez a
singularidade do momento político-cultural que hoje vive o país.
De
imediato, cabe destacar a radicalização do viés destrutivo buscado pelo novo
governo. Entretanto, esta política não é só destruição. A radicalidade do desmonte
encobre outro aspecto central da atuação da atual gestão. Em lugar da mera perseguição
à cultura, emerge uma orientação precisa de guerra, ou melhor de cruzada
ideológica contra o “marxismo cultural” e tudo que cabe nesta noção elástica.
Iná Camargo Costa, em seu livro intitulado Dialética do marxismo cultural,
assinala que o uso da expressão provém do início da década de 1990, tendo como
primeiros usuários cristãos fundamentalistas, ultraconservadores e de
extrema-direita dos Estados Unidos (Costa, 2020, p.37/38).
A
atuação, inspirada em tais concepções ideológicas, não busca o mero
desenvolvimento da cultura, das artes, do patrimônio e de outras modalidades
culturais, mesmo em viés autoritário e conversador, mas uma feroz cruzada contra
todas as modalidades culturais, em geral consideradas como contaminadas pelo “marxismo
cultural”. Tal cruzada está organizada a partir do núcleo ideológico duro de
extrema-direita do governo, instalado em diversos setores do aparelho estatal
nacional, com destaque para as relações internacionais e a educação, com a
estrita colaboração de órgãos estatais controlados pelo fundamentalismo
religioso. Trata-se, portanto, não só de destruição, mas da colocação em seu
lugar de outra cultura, visceralmente autoritária e conservadora, terraplanista,
com traços de intransigente fundamentalismo religioso e moral. Tal novidade do
atual cenário político-cultural nacional não pode, nem deve ser menosprezada.
Ela indica o perigoso patamar da guerra cultural desfechada pela gestão Messias
Bolsonaro.
A
cruzada não tem como polo principal ou está centralizada na Secretaria de Cultura.
O processo efetivo de descentramento da localização institucional da guerra cultural
aponta para a singularidade adquirida pela cruzada político-cultural-ideológica
em andamento. Diferente da situação anterior, na qual a direita no poder na
gestão Temer se concentrou em destruir o legado político-cultural das gestões anteriores
no governo federal (2003-2016), agora a extrema-direita, que tomou o poder, não
apenas continua de modo mais brutal a destruição das liberdades, das políticas
culturais e mesmo do campo da cultura, como pretende colocar em lugar da
cultura cidadã, crítica e laica uma cultura autoritária, conservadora e
fundamentalista, em termos políticos, morais e religiosos.
O
descentramento institucional do lócus formulador da luta político-cultural-ideológica,
agora em curso, desvela outra peculiaridade da situação política vivenciada
hoje pelo país. A rigor, a empreitada está organizada sob as ordens da fracção
ideológica do governo, comandada por seu astrólogo mor, e assumida plenamente
pelo presidente, pela família Bolsonaro e por dirigentes governamentais. Ou
seja, a guerra político-cultural-ideológica não está reduzida a uma área específica
do governo, como a Secretaria de Cultura, mas perpassa estrategicamente o
próprio governo, disseminada por vários de seus organismos e aceita plenamente
por seu núcleo central, instalado no Palácio do Planalto. Assim, se a cultura
não está inscrita como estratégica do modelo de desenvolvimento do país, a
rigor até hoje inexistente, ela foi plenamente inserida como estratégica na
luta de classes em curso no Brasil, na qual se defrontam modelos distintos de
país.
Nesse
contexto, por adesão ou omissão, o estímulo às culturas contrárias às
liberdades individuais e coletivas; à democracia; à cidadania e às diversidades
social e cultural, em especial aquelas relacionadas às culturas identitárias,
associadas aos negros, povos originários, mulheres e comunidades LGBT, não
apenas é implementada de maneira estratégica pelo governo, mas é reforçada
pelos setores dominantes e sua grande mídia. Em suma, esta convergência
política visa conjugar a destruição de culturas democráticas, emancipatórias,
laicas e republicanas, e a criação em seu lugar de culturas autoritárias,
fundamentalistas, elitistas e moralistas do novo velho Brasil.
O
papel destinado às “políticas culturais”, afins à gestão Messias Bolsonaro,
precisa ser discutido neste cenário. Qualquer intenção de algo mesmo próximo às
políticas culturais só parece adquirir sentido neste contexto. Nele, a cultura
está instrumentalizada e operada dentro de objetivos bastante delimitados, sem
quase nenhum resquício de autonomia, mesmo relativa. O acionamento
eminentemente instrumental da cultura dificulta e mesmo inibe a conformação de
uma política que busque desenvolver a cultura, inclusive aquela sintonizada com
os valores da extrema-direita. Nesta circunstância, o governo não conseguiu
articular até o momento uma efetiva política cultural no sentido rigoroso do
termo. A construção de política cultural requer um conjunto de requisitos
muitos deles não alcançados e diversos outros até contraditados pela atuação
político-cultural da gestão Bolsonaro.
O
conceito de política cultural indicado abaixo, elaborado em diálogo com a
famosa noção de Nestór García Canclini (1987 e 2001), pode ser um bom balizador
da distância que precisa ser percorrida entre a situação atual e condições
necessárias para se falar em política cultural, orientada pelas formulações
autoritárias, conservadoras e fundamentalistas da atual gestão federal. No
contexto deste texto, política cultural é entendida como: um conjunto
articulado, consciente, continuado, deliberado, sistemático e planejado de
intervenções, formulações e/ou atuações, de diversos entes culturais (estado,
sociedade, comunidades e instituições
culturais etc.) com o objetivo de: atender demandas e necessidades culturais da
população; estimular o desenvolvimento simbólico; construir hegemonias para
conservar ou transformar a sociedade e a cultura; e garantir cidadania e
direitos culturais. Ela aciona recursos institucionais, infraestruturais,
normativos, financeiros e de pessoal. Ela destina especial atenção às dimensões
organizativas da dinâmica cultural. Para que exista, a política cultural exige superar
a instrumentalização da cultura pela política e inaugurar uma nova relação, na
qual a política é instrumento e a cultura finalidade (Rubim, 2019a). Por
contraposição a tudo isto, a cultura na gestão Messias Bolsonaro, mais uma vez,
está sendo instrumentalizada como finalidades expressamente
político-ideológicas e como isto muitos dos requisitos inscritos na definição
acima não estão sendo contemplados.
Guerra
cultural, violência e os desafios da luta democrática
Mas
é preciso estar atento a um aspecto crucial dessa nova circunstância
político-cultural. A colocação da cultura na centralidade da disputa
político-ideológica na sociedade, paradoxalmente nunca formulada e realizada pelos governos de Lula
ou de Dilma no seu projeto de transformação democrática do Brasil, não
significa de modo algum a aceitação da disputa pela hegemonia intelectual e
moral em ambiência democrática, como imaginou Antonio Gramsci, quando fez a distinção
entre dominação via coerção e outra, de tipo diferente, efetivada por meio do
acionamento da coesão. O apelo à centralidade político-ideológica atribuída à
cultura pela gestão Messias Bolsonaro não implica a aceitação de uma arena legitima
de disputa política democrática de valores e de concepções político-culturais
diferenciadas que, por conseguinte, deve ser em princípio respeitada como tal
por todos os cidadãos e agentes políticos.
A
postura da gestão Messias Bolsonaro configura algo bastante perigoso, o
acionamento prévio da luta político-cultural, não para desenvolver a
democrática e a legitima disputa pelo poder político, como se poderia supor
ingenuamente. Antes significa a utilização antecipada e instrumental de tais
dispositivos culturais-ideológicos para viabilizar, em sequência, atos de
violência não só simbólica, mas também física, contra instituições, coletivos e
pessoas, que não se submetem à sua pregação autoritária e fundamentalista.
Enfim, não se trata de um projeto de disputa de hegemonia cultural (intelectual
e moral, como diria Antonio Gramsci), posto que a competição não se limita ao
confronto para esclarecer, sensibilizar e subsidiar tomadas de decisões políticas de modo
pacífico sobre o tema com base em procedimentos legais e legitimados pela
sociedade brasileira. Em verdade, o acionamento da visão estratégica da cultura
busca tão somente viabilizar violência simbólica e física contra todos os
adversários político-culturais, tomados como inimigos a destruir.
Deste
modo, a utilização da expressão guerra cultural em lugar de disputa pela
hegemonia político-cultural ganha todo sentido, inclusive porque não se vive
hoje um ambiente democrático no Brasil, mas um estado de exceção com todo
autoritarismo, violação às leis e violência que ele promove. Fundamental a
distinção entre estas duas concepções, posto que uma ocorre e torna possível o
aprofundamento da democracia com a busca de transição de uma democracia
meramente formal para uma democracia substantiva, na qual os requisitos formais
imprescindíveis à democracia estejam contemplados, mas sejam também assegurados
direitos (econômicos, sociais, políticos, ambientais e culturais) à maioria da
população. A outra opção, assumida pelo atual governo, pode levar a um regime
não só autoritário, mas totalitário, sem mais.
A
existência do estado de exceção coloca a questão democrática como vital para a
superação do retrocesso imposto ao país, inclusive na esfera cultural. Não se
trata apenas de lutar por uma democracia formal de verniz liberal-eleitoral,
mas de aprofundar a luta por uma democracia substantiva, que garanta todas as regras
formais necessárias ao ambiente de liberdades democráticas, e mais que isto
assegure cidadania e direitos para todos, inclusive a cidadania cultural e os
direitos culturais. No contexto (hiper)politizado do Brasil atual mais que
nunca o destino da cultura e das políticas culturais é perpassado pela questão
da democracia, de sua afirmação ou negação plena, com a instalação de um estado
declaradamente ditatorial.
A
luta pela democracia requer assumir a cultura como momento fundamental desta
luta. Primeiro porque a disputa democrática exige a configuração de uma cultura
política democrática, que se contraponha vigorosamente à cultura autoritária e
fundamentalista, que o governo e as classes dominantes tentam impor ao Brasil.
Sem a hegemonia dos valores democráticos não existe a possibilidade de uma
efetiva democracia no país. Tal processo de disputa é vital para a construção
de um Brasil radicalmente democrático. Segundo porque majoritariamente o campo
cultural tem sido agente ativo do processo de luta democrática no país desde
2016, atuando contra o golpe de 2016; contestando a gestão Temer entre
2016-2018; apoiando em 2018 à candidatura presidencial de Lula e, após sua
interdição arbitrária, a candidatura de Fernando Haddad; fazendo oposição ao
candidato (2019) e depois à gestão Messias Bolsonaro (2019 em diante) e
participando de modo criativo da campanha Lula livre, pela liberdade de
Luiz Inácio Lula da Silva, preso político entre 2018-2019.
Aliás
a atual cena político-cultural brasileira está marcada por significativa
politização do campo cultural ocasionada, dentre outras fatores, pela singular
presença das políticas culturais nos anos 2003-2016, como observou Alexandre
Barbalho nos textos já referidos. A politização dos desfiles das escolas de
samba no Rio de Janeiro e em São Paulo nos recentes carnavais pode ser tomada
como emblemática. Pedro Alexandre Sanches, no artigo “Das cinzas às cinzas”,
publicado na Carta Capital de 04 de março de 2020, discute a atitude
rebelde das escolas de samba, mas aponta também os limites espaço-temporais de
tais protestos. Ele lembra das atitudes fortemente críticas de escolas como:
Paraíso da Tuiuti; Mangueira; São Clemente; Águia de Ouro e Gaviões da Fiel.
A
politização, combinada e desigual, de determinados segmentos culturais merece
ser estudada, pois ela não parece ter grau similar a depender do setor cultural
analisado: artistas independentes, culturas digitais, culturas eruditas; culturas
identitárias, culturas populares, culturas universitárias, indústria cultural, dentre
outros. Tais áreas da cultura têm inserções políticas, sociais e econômicas bem
distintas, ocasionando possibilidades desiguais de politização e atuação no
atual cenário de disputas no Brasil. Por exemplo: os segmentos oriundos das
comunidades universitárias, em especial públicas, vinculados à educação, as
ciências, as artes e a cultura, têm posições abertamente críticas do governo
federal. Parece acontecer algo semelhante com os agentes culturais conectados
com as culturas identitárias, atacadas no dia-a-dia por membros e apoiadores da
gestão federal. Na área das culturas populares, os ativistas que tiveram mais
vínculos com os programas culturais, a exemplo do Cultura Viva, têm postura
mais definida contra o governo, enquanto outros permanecem omissos e distantes
das disputas políticas. Nas chamadas culturas eruditas a omissão parece ser
ainda maior, quando não algum apoio ao governo. No âmbito da indústria
cultural, com todos patrões aliados e acintosamente submetidos às ordens do
governo, muitas celebridades se opõem expressamente à Messias Bolsonaro e uma
fracção minoritária o apoia, a exemplo de artistas ligados à música sertaneja,
um tipo de música mercantilizada associada ao mundo rural, em especial aquele
ligado ao agronegócio. Nos artistas independentes a atitude crítica ao governo
também parece predominante, bem como entre os jovens próximos às culturas
digitais, ainda que existam também entre eles apoiadores do governo e
militantes da extrema-direita. O estudo dos comportamentos e dos pensamentos dos
agentes e das comunidades culturais torna-se fundamental para uma melhor
compreensão do cenário político-cultural brasileiro contemporâneo.
Tais
desafios especificamente no campo cultural implicam na luta pela preservação
crítica das experiências de políticas democráticas de cultura acontecidas entre
2003 e 2016, que as gestões Temer e Bolsonaro tentam sistematicamente apagar,
destruir e silenciar. Como apontou Walter Benjamin, o passado corre perigo,
pois está em contínua disputa no presente. Nas suas famosas teses sobre a
filosofia da história, Walter Benjamin escreveu poético: “Articular históricamente el pasado no significa
conocerlo ‘como verdaderamente ha sido’. Significa adueñarse de un recuerdo tal
cual éste relampaguea en un instante de peligro” (Benjamin, 1967, p.45).
O
risco se torna ainda maior pela situação autoritária vivida após o golpe de
2016 e a ascensão da extrema direita ao poder federal. A disputa
político-cultural da memória se apresenta como um dos desafios mais vitais a
ser enfrentado. O estudo e a reflexão crítica acerca das políticas culturais
desenvolvidas naquilo que elas tenham de equivocadas e/ou insatisfatórias
aparecem como outro desafio, a ser realizado mesmo nos atuais tempos sombrios.
Por
fim, torna-se vital o aprofundamento e o avanço de experimentos radicalmente
democráticos e inovadores em políticas culturais onde for possível, dado que o
Brasil é um país de organização constitucional federativa, com governos
estaduais e municipais, com certa autonomia, dirigidos inclusive por setores
democráticos e de esquerda. O exemplo do Consórcio Nordeste, que está sendo
construído pelos governadores dos nove estados do Nordeste, todos eles de
oposição à Messias Bolsonaro, é emblemático neste sentido. O Consórcio deve ser
acionado pela área da cultura.
O
amplo processo de luta pela democratização substantiva do Brasil necessita
aglutinar muitos agentes e comunidades em lugares e papéis diferenciados e
complementares de atuação. Os agentes e comunidades culturais devem ser base
essencial desta mobilização, colocando cultura, bem como educação, ciência e comunicação,
com centralidade na luta democrática. O campo cultural precisa associar suas
demandas de políticas culturais às reivindicações democráticas de cidadania e
de direitos da sociedade fortalecendo seu processo de politização e de
compreensão que a vida da cultura depende da conquista da democracia e da
sociedade mais justa, livre e criativa no Brasil.
Necessário
sensibilizar entidades da sociedade civil, movimentos sociais e sociedade
política, com suas lideranças e partidos especialmente os democráticos e de
esquerda, para que percebam a importância da cultura e para que lutem conjuntamente
por ela e pelas suas áreas afins. Os estudiosos e as instituições
universitárias, científicas e culturais também têm atuação destacada neste
processo de luta, seja pela manutenção da memória crítica das experiências
político-culturais expressivas acontecidos no Brasil e no mundo, seja pela
capacidade de analisar o presente e imaginar novas modalidades de atuação
político-cultural, em diálogo constante com a sociedade, os agentes e as comunidades
culturais. Os governos democráticos, progressistas e de esquerda devem colocar
as políticas culturais entre suas prioridades políticas, garantindo clima de
liberdade de criação e expressão, promoção e preservação da diversidade
cultural, respeito à diferença e viabilizando, inclusive financeiramente, o
desenvolvimento de experimentos criativos e inovadores, que se contraponham às
culturas autoritárias e fundamentalistas. A atitude e a atuação colaborativa de
todos estes agentes político-culturais, em conjunto com todas as forças
democráticas e de esquerda da sociedade brasileira, são hoje vitais para
resistir ao autoritarismo, reconquistar a democracia e construir o Brasil
inclusivo, soberano, diverso, plural e criativo.
Referências
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Alexandre. Em tempos de crise. O MinC e a politização do campo cultural
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Rubim. Políticas culturais pós-golpe de 2016 (texto
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Jornais
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Carta
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São
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El País
https://brasil.elpais.com/cultura/2019-12-27/sob-ataque-de-bolsonaro-cultura-defende-seu-impacto-na-economia-com-receita-de-170-bilhoes-de-reais.html
Revista
Fórum
Revistaforum.com.br
(04.03.2020)
Globo
blogs.oglobo.globo.com
*
Pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura
(CULT). Professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ex-Secretário
de Cultura do Estado da Bahia. Ex-Presidente do Conselho Estadual de Cultura da
Bahia.
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